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Um patrimônio histórico ameaçado: o Solar da Quinta e o Arquivo Público do Estado da Bahia

Da Carta Maior, 25 de Novembro 2021
Por Ordep Serra



Créditos da foto: (Carla Ornelas/GOVBA)

O Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), localizado numa edificação da século XVI, o Solar da Quinta do Tanque, encerra mais de quarenta e um milhões de documentos, muitos de quatrocentos anos, e está sendo ameaçado de despejo por conta de um estranho processo que pode resultar, de um lado, no leilão desse patrimônio histórico brasileiro e, de outro, na irreparável perda de documentos históricos de inestimável valor não só para a história do Brasil como para a historiografia mundial.

O processo inicia-se na década de 1980, quando um escritório de Arquitetura, o TGF ARQUITETOS LTDA, alega ter elaborado projetos para ampliação de um antigo Centro de Convenções, serviços que não lhe foram solicitados nem contratados pelo governo da Bahia, mas enviados espontaneamente à empresa mista Bahiatursa (Empresa de Turismo da Bahia S. A), extinta em 2014 por efeito da Lei Estadual 13.2014/2014.

Aberto o processo na Justiça da Bahia pelo referido escritório, fez-se uma cobrança absurda que cresceu com o passar do tempo a ponto de gerar para o Estado da Bahia uma injustificável dívida de praticamente R$ 50 milhões. No ano de 2005, no Governo Paulo Souto, a Bahiatursa, empresa mista à qual se cobrava a suposta dívida, colocou em penhor o Solar da Quinta do Tanque, onde se encontra o Arquivo Público do Estado da Bahia.

O processo ficou sem movimentação no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e, agora em 2021, transitou em julgado com uma sentença que determinou o leilão do imóvel, já tombado desde 1949 como patrimônio histórico nacional.

Diante dos protestos da sociedade civil, o leilão foi adiado e o juiz George Alves de Assis, da Tereira Vara Cível da Comarca de Salvador, passou a exigir que em sessenta dias a Fundação Pedro Calmon, hoje responsável pelo imóvel e pelo acervo nele contido, elabore plano de remoção dos documentos mantidos no dito Arquivo. A tarefa é inexequível, além de despropositada: segundo os especialistas, um estudo dessa monta exige o trabalho de uma grande equipe de técnicos e levaria anos para concluir-se.

Convém lembrar que por muito tempo o porto de Salvador foi o mais importante do Atlântico Sul, e notável documentação relativa ao tráfico transatlântico nessa parte do mundo se encerra no referido Arquivo.

O Governo do Estado da Bahia tem investido recursos para a conservação do acervo do APEB e recentemente obteve importante financiamento para o mesmo fim. A pretendida expropriação representaria um prejuízo incalculável para a cultura e a memória do país. A rigor, o Solar das Quintas não poderia sequer ser penhorado: O Decreto Lei Federal 25, de 1937, que instituiu o regime de preservação do Patrimônio Histórico Nacional, em seu artigo 11º prescreve que “As coisas tombadas que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só podem ser transferidas de uma a outra das referidas entidades”. O Solar da Quinta, além de suas notáveis características arquitetônicas, é também um monumento histórico de grande importância. Entre outros aspectos relevantes de sua história, dá-se que nele residiu por longo tempo o Padre Antônio Vieira, escritor mundialmente famoso, chamado pelo poeta Fernando Pessoa de “Imperador da Língua Portuguesa”.

A Academia de Letras da Bahia, a Associação Baiana de Imprensa (ABI), o Instituto dos Arquitetos do Brasil, Departamento da Bahia (IAB/BA), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), o Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil, a Associação Nacional de Pósgraduação e Pesquisa em Educação (ANPED), a Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), a Associação Brasileira dos Reitores das Universidades Estaduais e Municipais, Koinonia, Presença Ecumênica e Serviços e várias outras entidades se reuniram para lutar contra este descalabro, vergonhoso para a Bahia e todo o Brasil, um brutal atentado contra a cultura, a história e a civilização.

Ordep Serra é antropólogo, pesquisador, professor brasileiro da Universidade Federal da Bahia

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