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A complexa luta contra os supermicróbios

OMS fecha hoje, em alerta, sua Semana de Conscientização Antimicrobiana. Num mundo desigual, convivem uso abusivo e escassez de antibióticos. Ambas as condições favorecem infecções resistentes – e a Big Pharma, de olho nos lucros, não age




De OUTRASAÚDE, 24 de Novembro 2021
Por Flávio Dieguez


Em um mundo insalubre, onde metade da população não tem sistemas de saúde adequados, o desastre planetário das bactérias está no foco da Organização Mundial de Saúde (OMS) e sua Semana Mundial de Conscientização Antimicrobiana (18 a 24 de novembro). Diversas outras instituições participam dessa mobilização, como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), que na última sexta (19/11) destacou sua campanha de “conscientização da resistência antimicrobiana” (AMR na sigla inglesa). “Os antibióticos estão perdendo a eficácia”, adverte a médica argentina Pilar Ramon-Pardo, coordenadora da AMR na Opas.


Em vista disso, diz Pilar, a AMR incentiva ações que procuram prevenir o surgimento e a disseminação de infecções resistentes aos antibióticos – portanto, muito difíceis de debelar. As iniciativas de conscientização visam o público em geral, profissionais de saúde e legisladores, e buscam expor os riscos do uso inadequado, em geral excessivo, dos medicamentos. Esse é um lado do problema: o outro, como enfatiza a organização Médicos sem Fronteira (MSF), é a falta de acesso a antibióticos em grande número de países de baixa e de média renda.


Essa situação acelera os problemas combatidos pela AMR e a proliferação de infecções resistentes. Ocorre nesses países uma interseção perversa de sistemas de saúde fracos, com cobertura e financiamento de saúde insuficientes e pouca capacidade para responder à resistência aos fármacos antimicrobianos. Sem falar nos sistemas de água e saneamento ruins, argumentaram os MSF num artigo publicado na revista The Lancet. “A pandemia da covid-19 expôs e ampliou as desigualdades no acesso aos cuidados de saúde em muitos dos países onde trabalhamos”.

No Brasil, por exemplo, a Fiocruz afirma ter estudado três vezes mais amostras de bactérias resistentes a antibióticos, durante a pandemia. Os pesquisadores registraram cerca de mil amostras em 2019, depois quase 2 mil micróbios, em 2020, e em 2021, até outubro, 3,7 mil amostras vindas de diversos estados. Em reforço a seus alertas, os MSF mencionam teses acadêmicas sobre as desigualdades gigantes da Saúde. A pandemia global do coronavírus, para muitos pesquisadores, mostra o fracasso em enfrentar uma emergência global de saúde.

A pandemia carreou gastos públicos em volume sem precedentes, mas deixou outras áreas desamparadas, inclusive ameaças de longa data, como as infecções bacterianas resistentes. Essa é a área mais fraca e a que recebe menos financiamento global, diz um estudo bem atualizado no assunto. Seus autores argumentam que o coronavírus e os supermicróbios são emergências sanitárias paralelas e interativas. A resistência microbianas também se espalha rapidamente em todo o mundo por meio de viagens internacionais, migração e cadeias de suprimentos. O estudo conclui que o acesso a antibióticos eficazes é uma das bases atuais dos sistemas de saúde.

Futuras pandemias virais, alegam, carregam um significativo risco de hospitalização e de muitos casos de infecções bacterianas secundárias. Os sistemas de saúde no mundo todo precisarão de acesso oportuno aos antibióticos. O que justifica o trabalho atual da OMS de monitorar a produção de novos fármacos desse tipo, tentando articular a sua distribuição para as populações de menor renda. No entanto, analisa o estudo mencionado acima, os grandes fabricantes comerciais não consideram lucrativo atender às necessidades globais. Sugere-se, como alternativa, criar ou recorrer a “organizações de pesquisa e desenvolvimento sem fins lucrativos” já existentes. “Com o apoio de financiadores públicos e sem restrições por requisitos de lucratividade comercial”, elas ”poderiam fornecer de forma viável novos antibióticos a todos os necessitados”.



FLÁVIO DIEGUEZ
Jornalista, atuou na imprensa de resistência à ditadura (Movimento e Retrato do Brasil), editou Ciência Ilustrada, ajudou a criar a Superinteressante e participou da aventura de tentar erguer a Radiobrás, entre 2002 e 2005. É editor do site Outra Saúde.


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