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Caso Borba Gato e os cartões-postais da opressão


Em SP, dos 200 monumentos públicos com figuras humanas, 137 são de homens brancos; há apenas 1 de mulher negra. Violência simbólica se entrelaça às físicas. Combatê-las requer amplo debate e pluralidade, para desnaturalizar a cidade.

Do OUTRAS PALAVRAS, 10/08/2021
por Cássia Caneco

A Revolução Periférica atacou, no sábado dia 24, um dos cartões-postais da opressão na cidade de São Paulo. Enquanto enchia de esperança o movimento negro educador que luta constantemente por representação nos espaços e na memória pública da cidade, a ação agoniava a branquitude ao ponto de não esperar que as chamas que queimaram o Borba Gato esfriassem para se apresentar um empresário interessado em doar o valor necessário para restaurar a face colonial paulistana.

Ato de vandalismo para uns, pedido de diálogo para outros, para entender o porquê da rapidez em reconstruir a obra é preciso entender o que são monumentos e o que eles nos contam sobre a cidade. Em seu livro, História e Memória, Jacques Le Goff nos apresenta a origem etimológica da palavra monumento (monuentum). Sua raiz indo-européia men (espírito) exprime uma de suas funções essenciais: a memória (memini). Atendendo às suas origens, o monumento é aquilo que pode evocar o passado, que serve para nos fazer recordar e que é importante para transmitir os valores da cultura de um povo para a posteridade. No entanto, se faz necessário que com frequência nos perguntemos se o projeto de sociedade que representam ainda é válido, já que monumentos que quando homenageiam pessoas estão sujeitos às suas biografias, defendem negociações e políticas produtos do tempo histórico em que foram construídas.
Monumento a Duque de Caxias

Em São Paulo, por exemplo, data do final do século 19 a necessidade de dar peso histórico ao passado paulista. Neste período a cidade ascendia economicamente e queria se ver representada como à frente das demais, desbravadora e destemida. A saída encontrada foi alçar bandeirantes como Borba Gato, Raposo Tavares, Anhanguera e outros ao posto de heróis. No entanto, o bandeirantismo não representa só a coragem de ampliar as fronteiras do país e descobrir riquezas: essas expedições foram responsáveis pela escravização, extermínio de indígenas e pela destruição de quilombos. Para o movimento negro e indígena estas imagens representam desde sempre uma série de violências e continuam a impor hoje, por seu lugar de destaque na sociedade, silenciamento, opressão e desrespeito à memória de outros povos que também contribuíram para a construção da cidade e de suas riquezas.
Monumento às bandeiras (REUTERS/Paulo Whitaker)

O que observamos na ligeireza em restituir as botas do Borba Gato, ou na manutenção constante desta galeria a céu aberto de personagens controversas, é que existe uma parcela de pessoas que entendem os monumentos como uma forma de legitimar os poderes com os quais foram beneficiados ao longo da história. Isso pode ser observado no estudo Presença Negra nos Espaços Públicos, realizado no âmbito do Projeto Direito à Cidade de Todas as Cores pelo Instituto Pólis.

A pesquisa mostra que a maior parte dos monumentos catalogados pela Prefeitura de São Paulo em seu portal GeoSampa está localizada na região central, em áreas já valorizadas da cidade. Falta proporcionalidade nas representações, o Monumento às Bandeiras, por exemplo, tem um volume muitas vezes maior que todas as estátuas erguidas às pessoas negras e indígenas juntas, estas retratadas com frequência ocupando um lugar de exotismo e/ou submissão. Além disso, é importante dizer que das 200 personagens que representam figuras humanas, 137 representam homens brancos e apenas 1 representa uma mulher negra. Isso confirma que o atual projeto de memória pública de São Paulo insiste em estabelecer a ideia de uma cidade branca, patriarcal, racista e colonizadora, marcando os lugares sociais e impondo silenciamentos a mulheres e povos não hegemônicos.

Estátua do Anhangueira

Em entrevista recente à CBN, ao explicar por que o movimento Black Lives Matter, que protestava contra a brutalidade policial, terminou por encorajar ao redor do mundo a derrubada de uma série de estátuas, Abílio Ferreira propõe a associação entre a violência física e simbólica feita pelos manifestantes. É que aqueles atos, como o incêndio praticado pela Revolução Periférica, têm o poder de “desnaturalizar as cidades” como diz Gabriela Gaia, professora da UFBA, e nos faz perceber como contar a história de uns sobre os outros faz parte do mesmo plano que cristaliza identidades, induz comportamentos, promove despejos, remoções, valores proibitivos de acesso à terra, de deixar morrer e de deixar matar.


Monumento ao imperador Augusto

Grada Kilomba, em Memória da Plantação, fala que “o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra.” Através de ações multiformes e transdisciplinares para refundar cidades físicas que não se contém só pela violência, como as faixas “Onde estão os negros?” da Frente 3 de Fevereiro, da mostra “Vozes contra o racismo” que tomou muros, vias públicas e monumentos, do fogo no Borba Gato, dos estudos, discussões, dos projetos de lei em âmbito municipal e estadual em tramitação pelo país, esperasse encontrar caminhos de cura através do debate público para os traumas nos territórios. Para reconfigurar o espaço público, temos um passado inteiro para perseguir.

Cássia Caneco
É educadora popular, pesquisadora do Instituto Pólis nas áreas de Juventude, Cultura e Participação, co-gestora do Espaço de Artes Pretas e TLGBQIAP+ Periferia Preta e mutirante do Movimento Sem Terra Leste 1

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