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1° de maio: modernidade e ranger de dentes

Da Carta Maior, 30 de Abril 2021
Por José Raimundo Trindade


Créditos da foto: (Domínio Público)

“Uma vida é curta para mais de um sonho” (Leminski)[1]

Neste sábado temos um encontro com a história. O 1° de maio expressa a data mais dúbia e moderna do capitalismo na sua atual fase. A dubiedade da data se expressa na consolidação comercial pela comemoração do “dia do Trabalho” e não “dia do Trabalhador”. A inversão aqui, por mais que sútil, é proposital. O objeto assume a principalidade do lugar do sujeito, algo que o Capitalismo fará com maestria desde seu alvorecer. A dubiedade tem a obvia intenção de retirar do sujeito trabalhador sua autonomia e no limite sugar sua subjetividade.

A condição da alienação objetiva do trabalhador, expresso já na perspectiva de Marx de que “o trabalhador se torna mais pobre quanto mais riqueza produz [e...] “quanto mais mercadorias cria”, constitui a força ideológica mais expressiva do capitalismo[2]. Assim, a maior parte da sociedade que é constituída por viventes do trabalho, ou melhor, da venda do trabalho como uma mercadoria, crescentemente desvalorizada, porém sempre essencial, pois é ela que produz toda riqueza, a mercadoria força de trabalho e sua forma subjetiva o trabalhador assalariado, passam a ver o primeiro de maio como uma data somente comercial, onde a coisa trabalho é curiosamente festejada e o indivíduo trabalhador vilipendiado e mais do que sempre explorado.

A condição de dubiedade nos lembra a forma como Hobsbawm refere-se a essa transformação de uma data de rebeldia em mera “marca-registrada”, um processo em que gradativamente ocorre aquilo que se dá com o gato de Alice no País das Maravilhas, o gato vai desaparecendo e resta somente “um sorriso separado do corpo – bandeiras vermelhas sem aqueles que uma vez as portaram, resgatados por intelectuais nostálgicos, de porões embolorados de sindicatos”[3].

Esta data se reveste por outro de enorme importância e significância histórica. Podemos afirmar com algum grau de certeza que constitui data principal e marcante para a modernidade social, sendo marco nas disputas entre as “classes litigantes” trabalhadores e burguesias, e um momento resultante do impasse de forças estabelecido no século XX, entre as forças liberais pró extensividade da exploração do trabalhador e as forças democráticas e socialistas que buscavam diferentes graus de acordos entre a manutenção do regime intensivo de exploração e/ou sua regulação social, garantindo e expandindo direitos sociais, a par a manutenção do sistema capitalista.

Ainda com base em Eric Hobsbawm. O historiador inglês nos lembra que as comemorações de primeiro de maio antecedem ao fatídico episódio de Chicago de 1886. Como aborda este autor, o primeiro de maio é inicialmente uma data festiva, ligada a comunhão ou solidariedade entre iguais, algo manifesto de uma gradual construção de “uma classe em si, uma afirmação de poder (...) a afirmação da classe através de um movimento organizado”.

A disputa pela modernidade sempre esteve vinculada a luta social, como estabeleceu Marx em 1848 ainda nos primeiros movimentos de rebeldia social: a “sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto: a burguesia e o proletariado”. A modernidade como tratada no Manifesto Comunista[4], já é vista como algo gasoso, portanto, pouco permanente e sujeito ao constante revolucionar das técnicas e outros movimentos que expressam o Capitalismo como esse “moinho satânico”[5] no qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Assim, a modernidade constitui, antes de tudo, a forma contemporânea de reprodução social da humanidade, cujo centro é a predominância do assalariamento como forma dominante de exploração e produção da riqueza social.

As relações entre os homens no capitalismo aparecem mediadas pelas mercadorias, e as relações sociais apresentam, deste modo, a forma de relações entre coisas, de tal maneira que a interação que se estabelece entre os indivíduos acaba por ser sancionada pelo poder de compra de cada um.

O primeiro de maio foi inicialmente planejado como manifestação simultânea internacional pela jornada legal de oito horas de trabalho, sendo que a data assume os contornos que terá no século XX a partir das truculentas repressões que ocorrem com a realização de greve geral nos EUA em 1886, envolvendo cerca de 340.000 trabalhadores em todo o país, tendo início no primeiro de maio, a principal pauta das lutas era a redução da jornada de trabalho de 17h para 8h diárias de trabalho. Em Chicago, a greve atingiu centenas de empresas e o confronto resultou em três trabalhadores mortos.

Organizações internacionais de trabalhadores decidiram eleger o primeiro de maio como data de realização de manifestações anuais com o objetivo de lutar pela jornada diária de 8 horas de trabalho. Na França e depois na antiga União Soviética a partir de 1920 o primeiro de maio se tornou uma data especial de comemoração, assim como se estabeleceu a jornada de 8 horas diárias. No caso brasileiro somente na década de 1940 e conjuntamente com o estabelecimento da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), se tem oficializada a data do primeiro de maio como dia do trabalhador.

Este primeiro de maio de 2021 se realiza em um momento trágico para sociedade brasileira. Os trabalhadores brasileiros se defrontam com inúmeros ataques a sua própria condição de vida e reprodução social. Nos últimos quatro anos a burguesia brasileira estabelece o recrudescimento da superexploração do trabalho, intensificando as condições de fragilidade e vulnerabilidade dos trabalhadores, fortalecendo a figura do trabalho autônomo, intermitente, parcial, temporário e da terceirização, fatores que levam a um mercado de trabalho crescentemente precário, notáveis nos números referentes aos dados de subutilização, conta-própria e informalidade.

Não se trata somente da crise sanitária e dos problemas em torno do Covid-19 e as ameaças à saúde pública. Porém, as mudanças ocorridas no mundo do trabalho e no próprio capitalismo dos últimos anos colocam novamente os aspectos de precariedade e inclusive jornadas de trabalho semelhantes àquelas que se tinha no final do século XIX. Três alterações foram centrais para o estabelecimento deste novo padrão: alterações tecnológicas; alterações nas regulações sociais e fragilização da organização de trabalhadores.

Estas três alterações atuaram conjuntamente e simbioticamente. Incialmente as alterações tecnológicas, especialmente a chamada “reestruturação produtiva” e, conjuntamente, as novas tecnologias de comunicação e transmissão de dados, impuseram formas de trabalho e, principalmente, intensificaram o controle sobre o tempo de trabalho, avançando, inclusive, sobre o chamado “trabalho livre”, ou seja, àquele tempo de trabalho até então não alienado, ou não vendido, ao capital ou empresa capitalista. Por exemplo, as novas tecnologias permitem que o final de semana seja utilizado sob condições de exploração e execução de atividades laborais, utilizando o próprio espaço doméstico dos trabalhadores e trabalhadoras como locais de trabalho.

Os dados revelam um cenário de forte rigidez nas condições econômicas referentes ao mercado de trabalho, não se observando a recuperação econômica na velocidade necessária, pois tanto para homens e mulheres não se apresenta taxas com declínio significativo no número de desocupação, sendo que nos últimos dados divulgados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar)[6] quase quatorze milhões de brasileiros estavam desocupados e a grande maioria dos brasileiros (40,7% da população ocupada) vive na chamada informalidade, sendo que 26,9 milhões de brasileiros são subutilizados e estão sob condição de desalento, ou seja, não conseguem as condições de ocupação básica que possibilitem uma renda mínima necessária para sua sobrevivência.

Neste primeiro de maio se coloca mais do que nunca em outros momentos dos últimos anos a necessidade da organização dos trabalhadores e sua tenacidade na busca de dias melhores. Na atual condição de sofrimento imposto a classe trabalhadora brasileira, que atinge quase 400 mil de pessoas vitimadas pelo Covid e grande maioria dos trabalhadores se encontram em condições de enorme precariedade de vida se coloca a necessidade de reconstrução de uma ampla agenda de refundação do Estado nacional brasileiro tem que se basear em três pontos urgentes: i) reestabelecer o Ministério do Trabalho; ii) Revogar a LC 13.467/17 e estabelecer uma nova legislação de regulação das relações de trabalho; iii) Revogar a EC 95/16.

Somente a sociedade organizada em torno dos princípios de direitos universais e da solidariedade como condição humana nos possibilita superar o atual momento trágico da sociedade brasileira, buscando a garantia de empregos e direitos salariais, contratos de trabalho regulamentados e jornadas de trabalho menores e condizentes com a vida. Neste momento da sociedade brasileira a construção de uma agenda de soberania nacional passa pela intensa reorganização dos trabalhadores brasileiros, sendo o Primeiro de Maio um momento chave de reconstrução nacional e de afirmação de uma revolução solidária que supere definitivamente o capitalismo e nos leve a uma sociedade socialista e democrática.

Por fim somente uma referência ao título do texto. Ranger dos dentes se faz principalmente por dois motivos: raiva, essa forma da ira e do sentimento de discórdia, e pela fome, essa sensação tão dura e que retornou de forma tão forte ao Brasil nos últimos quatro anos, fruto do golpe de Estado de 2016 e da instalação dos governos ultraneoliberais.

A resposta dos trabalhadores neste primeiro de maio será necessariamente pelo ranger dos dentes, esperemos que seja pela sincera raiva organizada, por mais que o ranger dos dentes pela fome seja cada vez mais audível.

José Raimundo Trindade é professor da UFPA e Coordenador do OPAMET
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[1] Paulo Leminski. Toda Poesia. Quarenta clics em Curitiba. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[2] Karl Marx. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
[3] Eric Hobsbawm. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
[4] Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.
[5] Karl Polanyi. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
[6] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar. Acesso em: https://sidra.ibge.gov.br/acervo#/S/BB/A/17/T/Q.

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