Pages

Covid-19 na trilha do trabalho precário e vulnerável: o caso dos frigoríficos

NEXO CAUSAL ENTRE TRABALHO E DOENÇA



Do Le Monde Diplomatique, 28 de dezembro de 2020
Por Fernando Mendonça Heck e Lindberg Nascimento Júnior


Em lugares onde o setor de frigoríficos possui importância econômica, os casos da doença assumiram papel significativo. O setor se tornou centro de propagação da Covid-19, seja para os municípios–sede dos abatedouros, seja para os circunvizinhos, já que boa parte dos trabalhadores das fábricas se desloca diariamente para o trabalho

Comumente se apregoa o caráter democrático da contaminação causada pelo coronavírus (Sars-CoV-2) causador da Covid-19, que supostamente não diferenciaria gênero, etnia e conta bancária, atingindo toda a população. Afirmamos, em contraposição, que a preservação da saúde em meio à pandemia é uma questão que reforça desigualdades estruturais.1 Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de junho de 2020, indicou que, entre as pessoas que disseram ter algum sintoma de síndrome respiratória, 68,3% eram pretos ou pardos, contra apenas 30,3% de brancos. Na comparação entre mulheres e homens, para elas os dados indicaram 57,8%, ante 42,2% no que se referia à apresentação dos sintomas.2 Esses números sugerem questões de extrema importância para a análise da pandemia: desmentem a “democracia” da contaminação pelo vírus e apontam para a necessidade de abordar a determinação social do processo saúde-doença.

No Brasil, o vírus chegou por meio aéreo, ou seja, por meio da parcela da população com condições financeiras de viajar de avião, mas vitimou Rosana Aparecida Urbano, a trabalhadora doméstica da casa, primeira morte no estado do Rio de Janeiro.3Nas periferias, as precárias condições de moradia, o desemprego, a falta de saneamento, a baixa presença e a difícil situação dos equipamentos de saúde expõem esses territórios a índices de contágio muito maiores do que nas áreas nobres das cidades.4 São as trabalhadoras e trabalhadores que não possuem o direito ao trabalho remoto nem ao isolamento – portanto, obrigados pelas condições de sobrevivência a ir para a rua, a usar transportes coletivos lotados e a trabalhar nos serviços essenciais5 – os mais atingidos pela pandemia. Esse contexto reforça a atualidade do argumento dos estudos da medicina social latino-americana de que, numa mesma sociedade, as classes que a compõem mostrarão condições de saúde-doença distintas.6

É por essas lentes que observamos com atenção o avanço da pandemia nos frigoríficos, setor que sempre teve como características as condições de trabalho degradantes, com inúmeros casos de acidentes e doenças do trabalho,7 como as lesões por esforços repetitivos (LER/Dort) e agravos à saúde mental, empregos com baixa remuneração (no Brasil, 86% dos trabalhadores ganham no máximo três salários 8 e intensa rotatividade da mão de obra. Tais características fazem que, todos os dias, muitos trabalhadores deixem as linhas de abate e processamento de carnes,9 levando as empresas a buscar constantemente homens e mulheres dispostos a suportar tais condições de trabalho para fechar seu quadro de funcionários. É assim que se funda a constante migração pendular para o trabalho de municípios circunvizinhos aos frigoríficos e a busca até mesmo por imigrantes de outros países, no geral em situação vulnerável e sem muitas alternativas. Estes, além de viverem as degradantes condições de trabalho, se estrangeiros, usualmente moram aglomerados em alojamentos precários, isto é, em condições socioeconômicas que favorecem sua exposição ao contágio por Covid-19. Essa situação resulta em números como os divulgados pelo Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina10 sobre o percentual de exames positivos para a Covid-19 em um frigorífico fiscalizado: 53,3% entre trabalhadores de Bangladesh, 42,79% entre os haitianos, 39,58% entre os senegaleses e 30,91% entre os venezuelanos. A prevalência de testagem com resultado positivo para os trabalhadores brasileiros foi de 20,26%.

Além disso, o fato de as atividades de frigoríficos serem consideradas essenciais não só impediu o isolamento social de milhares de trabalhadoras e trabalhadores, mas também teve papel relevante na propagação da doença em sua fase de interiorização. Apesar de as empresas do setor afirmarem seus compromissos com os protocolos sanitários e as orientações das autoridades de saúde, a realidade concreta mostrou que, para além da aglomeração de trabalhadores nas linhas de produção, refeitórios e outros locais das fábricas, temos outros fatores, como o próprio ambiente refrigerado e com baixa taxa de renovação do ar, situação que fez os casos de Covid-19 em frigoríficos se tornarem expressivos em vários municípios brasileiros.

Um estudo verificou o surto de contaminação num frigorífico da Alemanha, chegando a registrar 1.029 casos entre seus 6.500 empregados,11 e identificou que as condições do ambiente de trabalho favoreceram a transmissão viral de um único caso para mais de 60% dos colegas de trabalho a uma distância de até 8 metros. Isso se deu pelos fatores supracitados, e os resultados da pesquisa indicam que, em ambientes como o dos frigoríficos, a distância física de 2 metros não é suficiente para evitar a transmissão, sendo necessárias medidas adicionais, como melhor ventilação e fluxo de ar, instalação de dispositivos de filtragem e uso de máscaras faciais de alta qualidade para minimizar os riscos de infecção.12

É dentro desse contexto que podemos citar alguns eventos ocorridos no Brasil, como o crescimento de três casos de Covid-19 para 193, em apenas 22 dias, num frigorífico do município de Cianorte (PR).13 Ou ainda em Itapiranga (SC), onde a taxa de incidência de Covid-19 chegou a ser três vezes maior no frigorífico do que no próprio município,14 caso que se repetiu em outras localidades do Brasil, por motivos específicos explicados adiante. Isso resulta em ocorrências como a de Ipumirim (SC), pequeno município de Santa Catarina no qual um frigorífico chegou a representar 2% do total de infectados de todo o estado.15

Nesse sentido, temos defendido que, no processo de interiorização do coronavírus pelo Brasil, em lugares onde o setor de frigorífico possui importância econômica, os casos da doença assumiram papel significativo.16 O setor se tornou centro de propagação da Covid-19, seja para os municípios–sede dos abatedouros, seja para os circunvizinhos, já que boa parte dos trabalhadores das fábricas se desloca diariamente para o trabalho (ver mapa). É por isso que em muitos municípios o número de casos de Covid-19 nos frigoríficos apresentou índices maiores do que os registrados pelo Ministério da Saúde para toda a localidade.

Assim, a situação da Covid-19 em frigoríficos deve nos encaminhar para uma reflexão sobre os limites e vulnerabilidades do sistema alimentar do agronegócio. É a oportunidade de analisar seriamente como a sociedade capitalista produz, processa e distribui seus alimentos, e como existe determinação social entre as classes sociais que serão mais ou menos afetadas em tempos de pandemia. O caso dos frigoríficos torna claro que são os trabalhadores, sobretudo os mais vulneráveis, e não os grandes cargos de gestão, CEOs ou acionistas, os mais expostos ao contágio. Isso quer dizer que a pandemia explicita as desigualdades de condições de saúde-doença entre classes sociais e demonstra que a Covid-19 segue a trilha do trabalho precário e vulnerável.

De imediato, é necessário agir e cobrar a identificação de sintomáticos, a aplicação de testes seguros com isolamento de casos positivos e todos os seus contactantes, além de outras medidas previstas pelas autoridades sanitárias, preservando a saúde do trabalhador. Reconhecer o nexo causal17 entre a Covid-19 e o trabalho em frigoríficos, como tem feito o Ministério Público do Trabalho, profissionais de saúde, sindicalistas e pesquisadores compromissados com a preservação dos direitos humanos, é outra ação fundamental. Também é preciso cobrar uma política federal de prevenção e vacinação, afastando o negacionismo e embasando-se em evidências científicas.

Para 2021, preocupa a discussão sobre a revisão da Normativa Regulamentadora 36 (NR dos frigoríficos), pois há interesses patronais em enxugá-la de maneira profunda, de modo que perca sua característica fundamental: estabelecer parâmetros mínimos de proteção à saúde e à vida das trabalhadoras e trabalhadores do setor. A defesa da NR-36 se coloca como elemento fundamental para a defesa da saúde do trabalhador. Além disso, torna-se essencial pensar em alternativas históricas sustentáveis, de longo prazo, por meio de um modo de organizar o trabalho que ganhe sentido verdadeiramente humano, subordinado às reais necessidades da sociedade, do coletivo, pois os limites explicitados pela pandemia e o sistema alimentar voltado exclusivamente ao capital estão significando agravos, acidentes e contaminação para a classe trabalhadora. 

Frigoríficos e Covid-19: região Sul (junho de 2020) (Elaboração: Ernesto Pereira Galindo)


*Fernando Mendonça Heck é professor de Geografia do Instituto Federal de São Paulo, Campus Avançado Tupã (SP), pesquisador do Centro de Estudos de Geografia do Trabalho (Rede CEGeT de Pesquisadores) e coordenador do Centro de Estudos sobre Técnica, Trabalho e Natureza (Cettran/IFSP); Lindberg Nascimento Júnior é professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do Grupo de Estudos em Desastres Naturais (GEDN).


1 Ver mais em: Ronan da Silva Parreira Gaia, “Subcidadania, raça e isolamento social nas periferias brasileiras: reflexões em tempos de Covid-19”, Revista THEMA, Pelotas, v.18, ed. especial, p.92-110, 23 jun. 2020.

2 “Mulheres e negros são mais afetados pela Covid-19 no Brasil”, Terra, 24 jul. 2020.

3 Maria Luisa de Melo, “Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon”, UOL, 19 mar. 2020.

4 Ver o boletim “O corona em São Paulo/SP: percepções e impactos da pandemia na Zona Leste da cidade”, de Altair Aparecido de Oliveira Filho e João Pedro de Almeida Santos.

5 Francisco M. Morais Soares, Kirley K. Batista Mesquita, Camilo H. Freitas Andrade, Dayllana Lima Feitosa, Tatyane Oliveira Rebouças, Giselle Freitas Marques e Ana Carolina de Melo Teixeira, “Fatores associados à vulnerabilidade da não adesão do distanciamento social de trabalhadores na Covid-19”, Revista Enfermagem Atual in Derme, Rio de Janeiro, v.93, Edição Especial, p.1-10, 2020.

6 Ana Cristina Laurell, “La salud-enfermedad como proceso social” [A saúde-doença como processo social], Revista Latinoamericana de Salud, v.2, p.7-25, 1982.

7 Marcos Hermanson Pomar, “Cidades pequenas com grandes frigoríficos registram 70% mais acidentes de trabalho”, O Joio e o Trigo, 6 out. 2020.

8 Dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) para as variáveis da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae): 1) Abate de suínos aves e outros pequenos animais; 2) Fabricação de produtos de carne; 3) Abate de reses exceto suínos.

9 Ver dois artigos sobre o assunto: Antonio de Pádua Bosi, “A recusa do trabalho em frigoríficos no oeste paranaense (1990-2010): a cultura da classe”, Diálogos, Maringá, v.17, n.1, p.309-335, 2013; Rinaldo José Varussa, “Industrialização, trabalhadores e Justiça do Trabalho no oeste do Paraná (década de 1990): algumas considerações”, Tempo da Ciência, Toledo, v.13, n.25, p.145-156, 2006.

10 Ângela Bastos, “Coronavírus em frigoríficos: SC tem 3,1 mil trabalhadores do setor infectados e 2,4 mil casos suspeitos”, Diário Catarinense, 16 jul. 2020.

11 “Coronavirus: German slaughterhouse outbreak crosses 1,000” [Coronavírus: surto em matadouro alemão atinge 1.000], Deutsche Welle, 20 jun. 2020.

12 Thomas Guenther et al., “Investigation of a superspreading event preceding the largest meat processing plant-related SARS-Coronavirus 2 outbreak in Germany” [Investigação de um evento de superespalhamento que antecedeu o maior surto de Sars–Coronavírus 2 relacionado a fábricas de processamento de carne na Alemanha], 23 jul. 2020.

13 Ação Civil Pública Cível 0000597-12.2020.5.09.0092.

14 Ação Civil Pública Cível 0000745-76.2020.5.12.0015.

15 Termo de Interdição n.4.042.744-7.

16 Fernando Mendonça Heck et al., “Os territórios da degradação do trabalho na região Sul e o arranjo organizado a partir da Covid-19: a centralidade dos frigoríficos na difusão espacial da doença”, Metodologias e Aprendizado, v.3, p.54-68, 2020.

17 Sobre o assunto, ver a decisão judicial da Vara do Trabalho de Frederico Westphalen (RS). Justiça do Trabalho – TRT da 4ª Região, “Juiz do Trabalho condena frigorífico a indenizar trabalhadora que contraiu Covid-19”, 13 out. 2020.

Nenhum comentário:

Postar um comentário