Da Carta Maior, 8 de Novembro, 2020
Por Lucian K. Truscott IV
Não é uma comparação perfeita, mas é suficientemente: minha sensação, quando fui para a cama na terça-feira à noite, era quase exatamente a mesma da noite da eleição de 1972. Richard Nixon já tinha ocupado a presidência por quatro longos anos. Watergate era apenas o mais recente ultraje naquilo que, em essência, tinha sido uma longa onda de crimes.
Nixon instalou seu consigliere, John Mitchell, como procurador-geral, e Mitchell passou a transformar o Departamento de Justiça no quartel general de retribuição pessoal de Nixon, arrolando júris, investigando oponentes políticos, acusando inimigos e prendendo líderes que protestavam contra a guerra. Nixon ordenou os devastadores bombardeios secretos do Camboja e do Laos, matando milhares de civis em um período de quatro anos.
Ele usou a Receita Federal [IRS], FBI e CIA contra seus inimigos políticos, empregando grampos ilegais e monitoramento da correspondência por correio e criando todo um sistema de vigilância, conhecido como COINTELPRO, para investigar ilegalmente, vigiar e assediar membros da imprensa, inimigos políticos e ativistas antiguerra. E em junho de 1972, Nixon enviou os "encanadores" à sede do Partido Democrata no complexo Watergate para grampear os telefones de seus oponentes e vasculhar os registros de campanha.
Os eleitores em novembro de 1972 já sabiam de grande parte disso. Todos sabiam que Nixon era trapaceiro e enganador. Watergate foi objeto de extensa cobertura da imprensa. O jornalismo investigativo ligou Mitchell, então presidente da campanha de Nixon, à invasão. O dinheiro, usado para pagar aos ladrões e mantê-los calados depois que foram presos, foi rastreado até um "fundo secreto" da Casa Branca. O Vietnã era um moedor de carne, consumindo milhares de vidas norte-americanas, matando centenas de milhares de civis e deixando de produzir a "paz com honra" que Nixon prometera. Todos sabiam que a guerra era uma causa perdida, mas Nixon a manteve.
Mesmo assim, na manhã de 8 de novembro de 1972, acordamos com a notícia de que Nixon tinha vencido em 49 dos 50 estados e recebido pouco menos de 61% dos votos.
Quem eram essas pessoas que votaram nele e lhe deram uma vitória esmagadora, com a guerra no Vietnã ainda excruciante, o envolvimento da Casa Branca no caso Watergate nas manchetes e indicações, nas notícias diárias, de mais crimes de Nixon?
Nós conhecíamos essas pessoas: eram nossas mães e pais e tias e tios e avós e vizinhos e colegas de colégio de faculdade e o homem que trabalhava na loja da rua principal e a senhora que servia sorvete no Dairy Queen e o operário da construção naquele novo edifício de escritórios no centro. Alguns deles eram até nossos amigos. Era um pensamento repulsivo, mas eles eram nós.
Nixon foi o pior pesadelo da minha vida até Trump, do mesmo modo que a eleição de 1972... até agora. Mas esta eleição leva a taça. Você tinha que estar atento em 1972 para realmente classificar Nixon como um monstro. Mas este ano? Todos sabiam. Todo mundo! Não vou sentar aqui e sujeitar vocês à lista dos crimes de Trump. Escrevo sobre eles há mais de três anos e outros os relataram em listas sombrias esta semana, desde as crianças em gaiolas até o roubo à luz do dia do tesouro público e crimes sexuais e abuso grosseiro da fé pública com suas embustices incalculáveis.
Mas não é sempre que você vê alguém cometendo assassinato ao vivo pela televisão, e este ano vimos isso várias vezes. Vimos um policial, Derek Chauvin, ajoelhar-se no pescoço de um homem desarmado, George Floyd, até que ele o matasse na rua em Minneapolis. E quase todos os dias durante meses, vimos Donald Trump entrar na sala de imprensa da Casa Branca e ficar lá e contar mentiras sobre a pandemia de COVID e se recusar a abordá-la de uma maneira racional, científica e medicinalmente apropriada. O que estávamos assistindo era Donald Trump matando norte-americanos com a mesma certeza como se tivesse o joelho em seus pescoços, fechando suas vias respiratórias, extinguindo suas vidas.
Uma coisa é tolerar seu racismo, misoginia, ignorância e desprezo pelo império da lei, mas outra bem diferente é vê-lo cometendo homicídio dia após dia, semana após semana, parado ali tratando com desprezo a pandemia como se fosse uma conspiração contra ele pessoalmente, em vez de uma doença mortal que infectaria milhões e mataria, a partir desta semana, quase um quarto de milhão de nós.
Todas as pessoas que votaram esta semana em Donald Trump sabem ler. Elas sabem contar. Elas sabem adicionar. Elas sabem quantos de seus conterrâneos morreram. Mas assim como Derek Chauvin era apenas mais um policial na ronda antes de se ajoelhar no pescoço de George Floyd e matá-lo, todo eleitor de Trump era apenas um cidadão comum antes assinalar seus votos e colocar seus joelhos no pescoço de nosso país e endossar as mortes de centenas de milhares de seus concidadãos e o homem que os matou.
Não se enganem. Um voto em Trump foi um voto para matar pelo menos mais 100.000 norte-americanos, o número de pessoas que os especialistas afirmam que permaneceriam vivas até o final do ano se houvesse uma ordem nacional para usar máscaras em público. Mas Trump se recusou a impor essa ordem racional e medicinalmente necessária, e pessoas continuam morrendo: 1.200 de nós na quarta-feira, 1.127 de nós na quinta. No ritmo que estamos indo, 300.000 de nós estarão mortos de COVID quando Trump deixar o cargo.
Acho que muitos de nós temos a teoria de que, se simplesmente nos livrarmos de Donald Trump, as coisas vão melhorar. Teremos um novo presidente que pode despedir os palhaços que trabalham para Trump e nomear pessoas razoáveis e honestas para governar nosso país, que podem reverter as políticas absurdamente regressivas dos últimos quatro anos que estão devastando nossa água e ar, desfigurando nossas terras nacionais, esmagando as almas e, na verdade, as vidas de pessoas que buscam asilo pata fugir de assassinos e estupradores em terras estrangeiras. Essa é a esperança que nos sustenta há quatro anos.
Parece que Joe Biden ganhou a eleição. Mesmo assim, aprendemos uma verdade amarga. Não vivemos no país com que sonhamos. Isso é o que é tão doloroso. Quase 70 milhões de norte-americanos votaram em um homem que faz Richard Nixon parecer um ser humano decente. Joe Biden pode ter vencido, mas perdemos. Não somos quem pensávamos ser.
Lucian K. Truscott IV, formado em West Point, tem 50 anos de carreira como jornalista, romancista e roteirista. Ele cobriu histórias como Watergate, os distúrbios de Stonewall e as guerras no Líbano, Iraque e Afeganistão. Ele também é o autor de cinco romances best-sellers e vários filmes de sucesso. Ele tem três filhos, mora no East End de Long Island e passa o tempo preocupando-se com o estado de nossa nação e rabiscando loucamente em uma tentativa infrutífera de tornar as coisas melhores. Ele pode ser seguido no Facebook no The Rabbit Hole e no Twitter @LucianKTruscott.
*Publicado originalmente em Salon | traduzido por César Locatelli
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