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Caminhar, atitude anticapitalista

Num tempo irrefletido, percorrer as ruas sem pressa ou objetivo utilitário é resistência real. Nega o produzir sem cessar. Reivindica a cidade-espaço público. E reintroduz o pensar-olhar; o abrir-se ao mundo sem a mediação dos mercados


De OUTRASPALAVRAS, 25 de Novembro, 2020
Por Carlos Madrid, em El Salto | Tradução: Antonio Martins


Imagem: Cristiano Mascaro

No livro Alice no País das Maravilhas, há um momento em que o Gato Risonho dá um conselho a Alice para poder sair da toca: “Sempre chegarás a alguma parte se caminhas o suficiente”. É uma frase podemos, os sobreviventes deste século XXI, recolher e retorcer, até tirar dela novos significados. Porque caminhar pode servir para chegar ao lugar desejado, mas também – exercícios que se abandona cada vez mais – pra nos reconhecer no espaço que habitamos. Para pensar.

Sob esta segunda concepção, são muitos os pensadores e pensadores que dedicam horas a tal ato. Tanto para exercê-lo quanto para refletir sobre seu papel em nosso dia a dia. É que, como diz o filósofo e escritor Santiago Alba Rico, “até há algumas décadas, andar era o normal; hoje, é uma prescrição médica ou um ato de disciplina saudável”. Por isso, em seus artigos em diferentes publicações e em alguns de seus livros, como Ser o no ser (Un cuerpo), o pensador dedicou muitas palavras a descrever a qualidade desta arte.

Esta forma de interagir com o que nos rodeia é compartilhada pela jornalista Anna Maria Iglesia. Sua tese de doutoramento, publicada no ano passado, trata dos praticantes de passeios e chama-se La revolución de las “flâneuses”. Para a autora, a importância de caminhar reside na ocupação do espaço público, em mostrar-se para a sociedade. “Para mim, o andar, como defende Rebecca Solnit, é importante como reivindicação do sujeito que tem direito a estar no espaço público. Significa que a rua rua não é uma concessão, mas nos pertence”, argumenta.

Anna Maria Iglesia passou cinco anos escrevendo uma tese sobre os que passeiam, deixando o gênero feminino de lado. Então, chegou um momento que se perguntou onde estavam as mulheres que também ocuparam as ruas nos últimos anos. Reparou o esquecimento com o livro. “É preciso que nos perguntemos onde está a mulher no espaço público; por que não se permite estar na rua/ por que se entende que uma mulher da rua é uma prostituta. Esta última associação já tem conotações de que a mulher não deveria estar na rua, menos ainda a certas horas. Resgatar estas mulheres implica valorizar a luta da mulher para autolegitimar-se no espaço público”, argumenta.

Quando o espaço-tempo alinha-se com o pensamento

Porque caminhar, muito ao contrário à percepção que temos hoje, serve em grande medida para pensar. Trata-se de um momento em que o espaço-tempo alinha-se com o pensamento, com um olhar que observa. “Pensar e olhar são atividades milagrosas, indispensáveis para a sobrevivência humana. Pensar e olhar, sobretudo, são experiências cada vez mais excepcionais. Por isso, como diz Stevenson, é preciso passear sem pressa e em liberdade, sem a disciplina de um rumo fixo, passando do interior ao exterior, da meditação ao mundo”, aponta Alba Rico. Em definitivo, passear como um modo de abertura ao externo.

De sua parte, Anna Maria Iglesia alinha-se com a ideia de caminhar de Roussou, que dizia que para si pensar implicava sair a um passeio. “Há toda uma corrente literária e filosófica que segue esta linha, que entende o caminhar como forma de pensar, de baixar o ritmo,de abstrair-se de uma determinada ocupação. O caminhar tem algo de ocioso, não é produtivo. Trata-se de um ato que abandona a lógica produtiva em que estamos todos imersos para ser úteis”.

É, portanto, um estado a que chegamos quando reduzimos a velocidade de nossos corpos e, portanto, de nossos cérebros. Algo que não é possível na velocidade de nossas máquinas, como dizia Stefan Zweig no século passado. “Não caminhamos na velocidade de um corpo; nem pensamos na velocidade de um cérebro. Isso implica que deixemos de lado todas as experiências indissociáveis destas velocidades antropométricas: as cerimônias, o cortejo amoroso, a compra em pequenos comércios, as esperas em geral, incluída, por exemplo, a da maternidade, cada vez mais incompatível com os ritmos produtivos e os fluxos de imagens das novas tecnologias”, afirmou o filósofo.

Os novos ritmos vitais, crê Alba Rico, nos atropelaram e fizeram com que a velocidade deixasse de ser um meio, para se transformar em sujeito. “A velocidade é o sujeito que preside nossas vidas, convertidas agora em meio e, às vezes, em obstáculos para a velocidade. A velocidade acelera nossos corpos e, se não podemos ir ao ritmo que ela impõe, nos deixa para trás ou prescinde de nós. O próprio corpo torna-se uma velharia que se interpõe em nosso caminho”, finaliza.

Desta forma, a velocidade fixada em nosso dia a dia pelo capitalismo é a que nos proibiu coisas tão simples como o aborrecimento, a atenção, a espera. Também o caminhar é esquecido por se tratar de um ato não produtivo – e, portanto, inútil, segundo as lógicas capitalistas. “Nosso tempo está voltado para sermos produtivos ou consumistas. O tempo do ócio, entendido como um tempo para sair das lógicas do mercado, reduziu-se ao mínimo. O filósofo coreano Byung-Chul Han diz algo assim: passamos da época em que nos impunham um certo trabalho: somos nós agora que nos impomos uma produção. Isso faz que na sociedade em que estamos o tempo para o inútil tenha desaparecido por completo”, defende Anna Maria Iglesia.
Recuperar o caminhar

Se é assim, não há meios de recuperar o caminhar? “Agora vejo que é difícil, mas estamos aprisionados, no capitalismo, em lógicas de produção difíceis de romper. Precisamos ser conscientes, em cada momento, de tudo o que nos rodeia e de como nos afeta. De tudo o que consumimos – e não me refiro apenas a comprar, mas também aos discursos, mensagens, lugares, de tudo o que nos impõem. Quando tomarmos consciência de tudo isso, poderemos mudar”, julga a jornalista.

Já Alba Rico opina que perdemos a experiência, agora convertida numa sabotagem premeditada da máquina da velocidade. Algo que se consumou porque “o que passeia, se o deseja, passeia fora dos circuitos da funcionalidade capitalista. Para passear é preciso tempo, que não temos; vontades, confiscadas pelo entretenimento industrial; e um espaço favorável, num universo tomado pelos automóveis.

Ainda assim, há uma fresta para a esperança. Ela está em exercer o passeio – o que leva a uma série de mudanças. “Elas exigem, como condição, que nossa sociedade e nossa economia se transformem. E este é um passeio longo e difícil. Enquanto isso, podemos tentar, às vezes, abandonar o corpo abstrato geral velocíssimo e regressar ao antigo, original e singular – o que garante os vínculos: com o mundo e com outros corpos”. O filósofo finaliza: “Que podem às vezes ser insuportáveis, mas sem os quais não há aprendizagem, nem prazer em profundidade, futuro”.

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