Ao contrário do que ocorre na Bolívia, com a vitória eleitoral de Arce, os chilenos não contam com uma ordem previamente estabelecida à qual retornar: terão que construir cuidadosamente uma nova normalidade para a qual nem mesmo os gloriosos anos do governo Allende podem realmente servir de modelo. Esse caminho é repleto de perigos.
Do Blog da Boitempo 29/10/2020
Por Slavoj Žižek.
* TEXTO ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.
Dois acontecimentos recentes trouxeram alguma esperança a estes tempos sombrios. Me refiro evidentemente às eleições na Bolívia e ao referendo APRUEBO no Chile. Em ambos os casos vemos uma rara sobreposição de democracia “formal” (eleições livres) e vontade popular substancial. Menciono os dois acontecimentos juntos porque embora pense que o que ocorreu na Bolívia seja diferente do que está acontecendo no Chile, espero que ambos compartilhem o mesmo objetivo de longo prazo.
O golpe de janeiro na Bolívia se legitimou como um retorno à “normalidade” parlamentar contra o perigo “totalitário” de que Morales aboliria a democracia transformando o país em uma “nova Cuba” ou uma “nova Venezuela”. A verdade é que, durante a década do governo Morales, a Bolívia de fato conseguiu estabelecer uma nova “normalidade”, unindo mobilização democrática do povo e progresso econômico concreto. Como apontou o novo presidente boliviano Luche Arce, que foi ministro da Economia e Finanças Públicas nesse período, durante a década do governo de Morales, os bolivianos desfrutaram dos melhores anos de suas vidas. Foi o golpe contra Morales que destruiu essa normalidade duramente conquistada e trouxe uma onda de caos e miséria. Por isso, a vitória eleitoral de Arce significa que os bolivianos não terão que iniciar um longo e doloroso processo de construção de uma nova ordem social – basta que retomem o que já estava lá até janeiro, e seguir a partir daí.
No Chile a situação já é mais complexa. Após de anos de ditadura direta, Pinochet introduziu sua própria normalização “democrática” na forma da nova constituição que garantiu a salvaguarda dos privilégios dos ricos no interior de uma ordem neoliberal. Os protestos que explodiram em 2019 são uma prova de que a democratização de Pinochet era uma farsa, como ocorre com toda democracia tolerada ou mesmo promovida por uma potência ditatorial. O movimento APRUEBO fez a sábia decisão de focar na mudança da constituição. Com isso, deixou claro para a maioria dos chilenos que a normalização democrática coordenada por Pinochet era um prolongamento por outros meios daquele regime ditatorial: as forças de Pinochet permaneceram nos bastidores como um deep state certificando-se de que o jogo democrático não saísse do controle. Agora que a ilusão da normalização pinochetista foi quebrada é que o verdadeiro trabalho árduo começa. Ao contrário do que ocorre na Bolívia, os chilenos não contam com uma ordem previamente estabelecida à qual retornar: terão que construir cuidadosamente uma nova normalidade para a qual nem mesmo os gloriosos anos do governo Allende podem realmente servir de modelo.
Esse caminho é repleto de perigos. Nas próximas semanas e meses, o povo chileno ouvirá frequentemente de seus inimigos a eterna pergunta: “Ok, agora que vocês ganharam, vocês poderiam nos dizer exatamente o que querem, podem decidir e definir claramente o seu projeto!” Penso que a resposta correta a essa situação se encontre na velha piada estadunidense sobre uma mulher experiente que quer apresentar um idiota ao sexo. Ela o despe, o masturba um pouco e, assim que ele fica com uma ereção, ela abre as pernas e introduz o pênis em sua vagina. Nesse momento ela diz: “Ok, chegamos, agora basta que você mova seu pênis um pouco para fora e, em seguida, para dentro, para fora e para dentro, para fora, para dentro …” Depois de um minuto ou mais, o idiota explode, furioso: “Dá pra decidir de uma vez!? É dentro ou é fora?”
Os críticos do povo chileno agirão exatamente como esse idiota: vão exigir uma decisão clara sobre que nova forma de sociedade os chilenos querem. Mas a vitória do APRUEBO obviamente não é o fim, não é a conclusão de uma luta. Essa vitória é, antes, o início de um longo e difícil processo de construção de uma nova normalidade pós-Pinochet – um processo com muitas improvisações, recuos, avanços. De certa forma essa luta será mais difícil do que os protestos e a campanha pelo APRUEBO. A campanha tinha um inimigo claro e bastava articular seus objetivos com as injustiças e misérias causadas pelo inimigo em um plano confortável de abstração: dignidade, justiça social e econômica, e assim por diante. Agora o povo chileno terá que operacionalizar seu programa, traduzi-lo em uma série de medidas concretas, e isso vai trazer à tona todas as suas diferenças internas que acabam sendo ignoradas na solidariedade extática entre as pessoas.
Lembro-me de uma mudança semelhante ocorrida por volta de 1990, quando o “socialismo realmente existente” estava desmoronando na Eslovênia. Havia a mesma solidariedade global, mas assim que a oposição se aproximou do poder, começaram a aparecer rachaduras nesse edifício. Primeiro houve um racha entre conservadores nacionalistas e liberais; depois os próprios liberais se dividiram entre liberais capitalistas de estilo ocidental e a nova esquerda; em seguida os comunistas que estavam no poder tentaram se juntar a essa nova esquerda e se apresentar como uma nova social democracia… Não se deve subestimar como o inimigo vai procurar explorar esse processo necessário. Muitos membros do establishment vão fingir estar se aliando ao povo chileno, juntando-se a ele na celebração de um novo momento de democracia, mas logo começarão a alertar contra o “novo extremismo” e a trabalhar sutilmente para conseguir manter a mesma ordem sob uma nova roupagem, a mesma estrutura com apenas algumas mudanças cosméticas. O imperador não vai admitir que está nu, vai apenas vestir uma roupa nova…
Então, voltando à minha piada obscena, eu diria que o povo chileno deve tratar seus oponentes exatamente como se deve tratar idiotas sexuais. Deve dizer a eles: “não, estamos começando um processo longo e alegre onde não há conclusão rápida, vamos entrar e sair lentamente, entrando e saindo, até o momento em que o povo chileno fique plenamente satisfeito!“
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Sugestões de leitura da Boitempo, para aprofundar:
Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo, de Slavoj Žižek
A potência plebéia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia, de Álvaro García Linera
Margem Esquerda n. 34, dossiê de capa sobre crise, neoliberalismo e insurreições populares na América Latina e no mundo
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014), O absoluto frágil (2015), O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016) e o mais recente Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo (2020). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Grupo de Pesquisa Sul-Sur
Este grupo se insere numa das linhas de pesquisa do LABMUNDO-BA/NPGA/EA/UFBA, Laboratório de Análise Política Mundial, Bahia, do Núcleo de Pós-graduação da Escola de Administração da UFBA. O grupo é formado por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e de diferentes instituições públicas de ensino e pesquisa.
Buscamos nos apropriar do conhecimento das inter-relações das dinâmicas socioespaciais (políticas, econômicas, culturais) dos países da América do Sul, especialmente do Brasil, da Bolívia, da Argentina e do Chile, privilegiando a análise histórica, que nos permite captar as especificidades do chamado “subdesenvolvimento”, expressas, claramente, na organização das economias dos diversos povos, nos grupos sociais, no espaço.
Nosso campo de investigação dialoga com os campos da Geopolítica, Geografia Crítica, da Economia Política e da Ecologia Política. Pretendemos compreender as novas cartografias que vêm se desenhando na América do Sul nos dois circuitos da economia postulados por Milton Santos, o circuito inferior e o circuito superior. Construiremos, desse modo, algumas cartografias de ação, inspirados na proposta da socióloga Ana Clara Torres Ribeiro, especialmente dos diversos movimentos sociopolíticos dessa região, das últimas décadas do século XX à contemporaneidade.
Interessa-nos, sobretudo, a compreensão e a visibilidade das diferentes reações e movimentos dos países do Sul à dinâmica hegemônica global, os espaços de cooperação e integração criados, as potencialidades de criação de novos espaços e os seus significados para o fortalecimento da integração e da cooperação entre os países do Sul, do ponto de vista de outros paradigmas de civilização, a partir de uma epistemologia do sul. Através das cartografias de ação, buscamos perceber as antigas e novas formas de organização social e política, bem como os espaços de cooperação SUL-SUL aí gestados. Consideramos a integração e a cooperação Sul-Sul como espaços potenciais da construção de novos caminhos de civilização que superem a violência do desenvolvimento da forma em que ele é postulado e praticado.

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