Pages

O lugar dos Estados Unidos no mundo está em questão

Como a ordem internacional que vivemos foi constituída e quais as mudanças em curso? Estas foram algumas das questões levantadas por Diana Tussie (FLACSO Argentina) em conferência na PUC-SP
Da Carta Maior, 03/12/2019 

Por Tatiana Carlotti 

Créditos da foto: Diana Tussie e Tullo Vigevan (Tatiana Carlotti)

“O lugar dos Estados Unidos no mundo está em questão, mas o que isso revela sobre a ordem internacional em que vivemos?” Como essa ordem foi constituída e quais as mudanças em curso? Estas foram algumas das questões abordadas por Diana Tussie, diretora da área de Relações Internacionais da FLACSO Argentina, durante sua participação na Conferência Nacional de Estudos Políticos sobre Estados Unidos, ocorrida na última terça-feira (26.11), na PUC-São Paulo.

Co-diretora da prestigiada Global Governance, Diana Tussie trouxe em sua conferência o processo de consolidação da hegemonia norte-americana, que passa pela constituição da área de relações internacionais; problematizando o atual processo de desinstitucionalização no país, promovido pelo governo Trump.

“Os Estados Unidos consolidaram sua hegemonia construindo instituições”, explicou Tussie, identificando dois saltos em termos de influência e hegemonia no contexto internacional: o primeiro, em 1945, após a II Guerra, quando o país se projeta como principal credor internacional, “constituindo a nova ordem internacional global, que envolveu o conflito com a União Soviética mas, também, o surgimento das Nações Unidas, dos acordos de Bretton Woods” entre outras institucionalidades.

O segundo salto, ela identifica depois da queda do Muro de Berlim, em meio às transformações da globalização com o Consenso de Washington (1989), o estímulo aos regionalismos econômicos, a criação da Organização Mundial do Comercio (1995) em substituição do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), de 1947.

Com Trump, no entanto, o país entra na contramão desse movimento, sofrendo um crescente processo de desinstitucionalização que vem criando uma série de conflitos. “Nós que assistimos a este processo de institucionalização crescente, agora, observamos o seu inverso”, frisa Tussie, dimensionando o impacto de um novo ator, a China que entra no jogo internacional, na condição de credora.

O lugar no Estados Unidos, reforça Tussie, está sendo questionado, o que tem imensas repercussões na ordem do mundo tal como o conhecemos. Uma ordem que reflete a consolidação da hegemonia norte-americana.

Construção de institucionalidades

O primeiro presidente norte-americano a se projetar como “articulador” no cenário internacional foi Woodrow Wilson, durante a Conferência de Paris (1919), que reuniu os vencedores da I Guerra Mundial. Um ano antes, Wilson havia apresentando seus Quatorze Pontos, um plano para a paz mundial, que serviria de base para a Liga das Nações, garantindo o Nobel da Paz de 1919 ao presidente norte-americano que, “colocado num pedestal”, inaugura a chamada “diplomacia presidencial”.

Tussie observa, entretanto, que essa paz “triunfante e elegante” desses senhores “muito bem vestidos” na Conferência de Paris, choca-se com a política externa, fortemente agressiva dos Estados Unidos contra os países vizinhos, vide as invasões ou interferências diretas promovidas contra Vera Cruz (1914), Haiti (1915), República Dominicana (1916), Panamá (1918), Honduras (1924), Nicarágua (1926).

A não importância da América Latina, portanto, deve-se ao fato dela estar “sequestrada” pelos Estados Unidos. “Parte do Ocidente está sequestrado, visto como a região onde os Estados Unidos não toleram intromissões”. Apesar disso, os Estados Unidos consolidam a imagem de país épico e missionário, salvador e garantidor da ordem internacional em dois contextos traumáticos, o da Primeira e o da Segunda Guerra. As instituições são, neste sentido, “uma marca sacrifical dos Estados Unidos

Tussie também destacou a adoção, em 1933, da Lei de Reciprocidade nas relações internacionais. “A negociação começa a ter como base a reciprocidade, mas a reciprocidade não é idêntica. Ao negociar com os Estados Unidos, eu não consigo ganhar o mesmo que lhe dou. Esse é outro problema”, explica. O fato é que os princípios da “reciprocidade e da nação favorecida” servirão de base à constituição do GATT (1947) que entre seus 23 países-membros, contava com quatro países latino-americanos: Cuba, Chile, Brasil e Uruguai. O GATT será sucedido pela Organização Mundial do Comércio em 1995.

Construção de pensamentos

“Os Estados Unidos são grandes construtores de empreendimentos institucionais e, também, de pensamentos internacionais”, daí os investimentos realizados pelo país para a construção das relações internacionais, inclusive, silenciando alguns temas e evidenciando outros. “O macartismo expulsou das universidades uma riquíssima tradição norte-americana marxista e não stalinista, que promovia a relação orgânica entre teoria e práxis”, exemplifica.

Ela também problematizou a especialização dos estudos. “Não se é mais parte do globo, mas de áreas”, ou seja, o que se passa na América Latina é América Latina, na África é tema dos africanistas etc. Em sua avaliação, “a teoria necessita não somente da generalização, mas também do estudo de suas partes, evidenciando as hierarquizações”, no entanto, ocorrem compartimentações, e como somos parte de um continente sequestrado, nosso pensamento acaba marginalizado.

Em sua avaliação, é possível observar, no campo das relações internacionais, a presença de um pensamento fatalista, “espécie de realismo periférico”, que vê no “bom comportamento” a única possibilidade de negociação; e de um pensamento mais idealista, lembrando o grande aporte dos anos recentes de governos progressistas ou de esquerda na América Latina.

Governos que passaram por um “boom das commodities”, em dimensões “não vistas desde Primeira Guerra Mundial”, e graças à presença da China no tabuleiro internacional. Em meio a isso, as teorizações conceituais também sofreram mudanças, “a parte mais técnica do comércio internacional foi deixada de lado”; ao mesmo tempo, “instituiu-se relação de regionalismo sob a forma de cooperação”.

Hoje, porém, isso está sendo dissolvido e por diferentes experiências no continente, vide o caso Bolsonaro no Brasil. “Eu me sinto no fim de uma época”, afirmou. Neste futuro, ainda incerto, a China acena como ator de enorme relevância. “Nova credora internacional, ela vem ampliando o espaço econômico global, o que poderá significar mais independência em termos de ação econômica”. Já em termos de ação política, ponderou, ainda é cedo para afirmações.

A íntegra da conferência Estados Unidos en observación: muros contruidos, muros derrribados en la fabricación de las Relaciones Iternacionales (1h), transmitida pela TV PUC em seu canal do Youtube, pode ser conferida abaixo:

Nenhum comentário:

Postar um comentário