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Pacote Guedes (2): Unidos pelo fundamentalismo

Às turras até a semana passada, Bolsonaro e os velhos jornais voltam a se unir, em torno das propostas do ministro. Neoliberais brasileiros parecem incapazes de se reciclar – e estão senpre prontos a um flerte com os protofascistas

De OUTRASPALAVRAS, 06 de Novembro, 2019
Por Felipe Calabrez | Imagem: Wenyi Geng


Arrefecido o clima de tensão entre o governo Bolsonaro e os velhos jornais, que encontrou seu auge semana passada, quando o presidente disparou ofensas excessivas – até para seus padrões – aos principais veículos de comunicação, sobretudo aos jornalismos da Globo e da Folha de São Paulo, um forte clima de boa vontade com o governo chamou a atenção nessa terça-feira. O motivo: a “agenda econômica” de Paulo Guedes.

O governo enviou três Propostas de Emenda Constitucional (PECs) ao Senado nesta terça-feira, 5/11. A PEC “Mais Brasil”, que Guedes chama de Pacto Federativo, altera novamente o regime fiscal e propõe, entre outras coisas, a soma do mínimo obrigatório de recursos destinados a educação e saúde. A PEC da Emergência Fiscal institui gatilhos de contenção de gastos públicos. Uma terceira PEC visa rever – na prática, eliminar – diversos fundos públicos, com o objetivo de direcionar esses recursos para um suposto abatimento da dívida pública1.

O tom otimista espalhou-se pelos jornalistas do carioca O Globo e contagiou também no Estado de São Paulo. Sua manchete de capa anunciava uma esperada retomada dos investimentos privados, revelando abaixo, em letras menores, que a fonte do otimismo era o próprio governo… Por fim, a Folha de São Paulo, dedicou um editorial de apoio explícito às propostas de Guedes onde afirma:


Guedes mostra realismo quando reconhece ser politicamente impossível abrir caminho para uma redução dos montantes aportados em educação e saúde. A solução de agregar as duas rubricas pode ser um bom caminho intermediário.(FSP, 05/11)

Conforme o mesmo jornal revela em outra matéria, a proposta original do ministro da economia era retirar os pisos para essas áreas, mas foi alertado para as dificuldades políticas em fazer passar tal proposta. Permaneceu então a ideia de somar os gastos com os inativos aos limites mínimos dessas áreas, o que provavelmente produziria enorme pressão sobre os gastos de custeio.

Desindexar, desvincular e desobrigar gastos públicos são os lemas de Paulo Guedes. Suas justificativas são o “excesso de gastos públicos” e a rigidez orçamentária – isto é, o fato de que a maior parte dos recursos são de destinação carimbada. A quebra dessa rigidez, de acordo com o ministro, aumentaria o papel da classe política na decisão sobre alocação dos recursos.

No entanto, por trás das tecnicalidades e dos dados de difícil compreensão nos quais se apoia intransigentemente a retórica governamental – dados que não raro se mostram equivocados – está o objetivo geral de reduzir de modo drástico e generalizado o papel do Estado brasileiro. Busca-se fazê-lo seja no fomento a determinados setores da economia, seja na defesa desses setores diante do interesse de outros países e seus capitais, ávidos por incorporar ativos rentáveis e ampliar seus poder geoeconômico.

As propostas de Guedes, portanto, revelam muito mais do que a crença em uma política macroeconômica equivocada, incapaz de enxergar a atual insuficiência de demanda e o excessivo endividamento das famílias. Revelam também uma visão rudimentar do mundo social, segundo a qual a pura lógica do mercado produziria uma magnífica eficiência alocativa dos fatores de produção sem entrar em qualquer conflito, mas, ao contrário, reforçando, a “ordem democrática”. Esta última, vale dizer, de importância secundária, sempre aparecendo em sua retórica como um verniz mal pincelado, como denota sua declarada predileção pelo modelo econômico chileno, implementado sobre a força das armas e da eliminação física de seus oponentes. Por isso causa constrangimento sua rasa menção a Rousseau em entrevista recente.

O que a festejada artilharia de PECs do governo também revela é que se pretende, no curto espaço de tempo de um mandato presidencial desfazer à força da britadeira os fundamentos do pacto social-democrático acordado em 1988. Não é à toa que as medidas são todas enviadas em forma de emendas constitucionais.

É difícil prever o grau de sucesso da empreitada, pois as medidas deverão passar pelo crivo do Parlamento. O que está se revelando essa semana, no entanto, é que o governo ainda dispõe do apoio entusiasmado da velha imprensa. Une-os uma agenda econômica marcada por medidas que combinam uma visão torpe sobre o funcionamento do mundo social com os interesses mais mesquinhos de um empresariado que segue sem visão de país. Ao requentar o velho discurso fiscalista e anti-Estado, sempre que lhe convêm, Executivo e mídia seguem também sem criatividade.

1 Ainda na terça-feira, especialistas ouvidos pelo jornal Valor Econômico refutaram a ideia de que tal medida produziria efeito sobre a dívida bruta. De acordo com eles, por razões técnicas e contábeis, o efeito sobre a dívida seria nulo.

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TAGSFUNDAMENTALISMO ECONÔMICO, NEOLIBERALISMO, PACTO FEDERATIVO, PAULO GUEDES, PEC DA EMERGÊNCIA FISCAL, PEC DO PACTO FEDERATIVO, PEC MAIS BRASIL, ULTRALIBERALISMO


FELIPE CALABREZ
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), é professor de Relações Internacionais na FMU

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