Pages

Ordet: quando o milagre é possível

Obra-prima do dinamarquês Carl Dreyer mostra o conflito entre o mundo concreto e o sagrado — só transcendido pelo amor e pela fé. Na mesma sessão, conectado pela celebração da vida, A busca do lucro e o sussurro do vento, de John Gianvito


















Da página Outras Palavras, 08 de julho, 2019
Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Cinema


Não são poucos os críticos (entre eles me incluo) que consideram Ordet – a palavra (1955), do dinamarquês Carl Dreyer, um dos filmes mais belos de todo o cinema.


É essa obra-prima, em cópia restaurada, que os cinéfilos de São Paulo e do Rio de Janeiro terão oportunidade de ver ou rever nas próximas semanas, dentro da Sessão Mutual Films nos cinemas do IMS, tendo como contraponto e complemento outro filme extraordinário, o documentário A busca do lucro e o sussurro do vento (2007), de John Gianvito, inédito no Brasil. Mas atenção: são poucas as sessões (duas em cada cidade), algumas delas com debates incluídos.

Fé e amor


Premiado com o Leão de Ouro do festival de Veneza, Ordet é talvez o ponto mais alto de uma filmografia constituída de uma obra-prima a cada década: A paixão de Joana d’Arc (1928), O vampiro (1932), Dias de ira (1943), Ordet (1955) e Gertrud (1964). Como todo o cinema de Dreyer, ele é perpassado pela questão da fé e de sua relação com o amor, em seu sentido mais abrangente: amor carnal, amor à humanidade, amor a Deus.


Aqui, trata-se do drama (baseado numa peça teatral de Kaj Munk) de uma família da área rural da Jutlândia, nas primeiras décadas do século 20. O patriarca Morten Borgen (Henrik Malberg), abastado fazendeiro viúvo, adepto de um cristianismo que celebra a vida e a natureza, vê seus três filhos seguirem diferentes caminhos em face da religião.

Mikkel (Emil Hass Christensen), cuja mulher, Inger (Birgitte Federspiel) está grávida, perdeu a fé, tornou-se agnóstico; Johannes (Preben Ledorff Rye), ao contrário, é tão fervoroso que acredita ser uma reencarnação de Cristo; e o caçula Anders (Cay Kristiansen) está apaixonado pela filha do alfaiate (Ejner Federspiel) que é líder de uma seita cristã rival e que não permite o namoro.

O modo como Dreyer trabalha cinematograficamente esse jogo de perspectivas diante do mundo concreto e do sagrado (ou do mistério, se se preferir), e sobretudo o contraste entre o cristianismo luminoso de Morten Borgen e o cristianismo sombrio e severo do alfaiate, é de um refinamento que só pode ser qualificado de sublime.

Loucura e iluminação


Diferentemente dos fortes contrastes entre luz e trevas do expressionismo alemão, Dreyer é famoso pela intensidade de seus brancos e pelos infinitos matizes de cinza que o separam do negro profundo. Talvez isso tenha a ver com sua rejeição moral do maniqueísmo, do fanatismo e da intolerância, talvez também com uma postura religiosa que busca o transcendente no imanente, o invisível no visível, ou, dito de outra maneira, a manifestação da divindade na inesgotável riqueza do mundo concreto.

É célebre o cuidado do diretor com a composição do quadro e com os deslocamentos suaves de câmera (que ele chamava de “grandes planos fluentes”), que nunca desequilibram abruptamente o enquadramento, a não ser quando há uma necessidade dramática para isso.

Se são capazes de produzir momentos de insuperável beleza, esses procedimentos nunca têm um intuito meramente estético, estão sempre a serviço do drama e de seu sentido humano. Em Ordet, especificamente, trata-se de levar a recorrente relação entre fé e amor a seu ponto crítico: a possibilidade do milagre. E mais não se pode dizer, sob o risco de estragar a experiência de quem ainda não viu o filme.

Excepcional diretor de atores, Dreyer extrai aqui uma atuação fabulosa de Preben Ledorff Rye, que (assim como a Maria Falconetti de Joana d’Arc) transcende o registro do realismo psicológico no papel de Johannes, compondo uma figura entre o louco e o iluminado.

Num momento crucial da história, a menina Maren (Ann Elisabeth Groth), filha de Mikkel, segura a mão do tio Johannes, ao mesmo tempo confiando em sua palavra divina e mantendo-o preso ao mundo concreto do qual ele parece prestes a se descolar. O amor puro da criança, parece nos dizer Dreyer, é a ponte entre a divindade e os homens. Se isso é verdade do ponto de vista científico ou teológico, não importa: é verdade no cinema de Carl Theodor Dreyer.

A busca do lucro…


A conexão entre Ordet e A busca do lucro e o sussurro do vento, seu par na Sessão Mutual Films, não é nada óbvia à primeira vista. O documentário de John Gianvito é uma história social dos Estados Unidos narrada de modo surpreendente e original: por lápides tumulares e marcos históricos em referência a homens e mulheres que lutaram por diferentes espécies de emancipação: territorial, religiosa, social, racial e de gênero.

O título evidencia algo que a própria organização das imagens já deixa claro: a visada é política, o que se exalta é a luta contra a opressão ditada pelo interesse material. Mas a segunda parte da frase (“o sussurro do vento”) chama a atenção para o atemporal, para a vida que flui ao sabor dos movimentos da natureza. Gianvitto define seu filme como tentativa de poema visual inspirada no livro de Howard Zinn A People’s History of the United States, que teve mais de um milhão de exemplares vendidos desde sua publicação em 1980.

De locais de massacres de indígenas e de batalhas pela independência a sepulturas coletivas de operários mortos pela repressão policial, passando por túmulos de libertários célebres (Thoreau, Emma Goldman, Malcolm X etc.), esses inúmeros signos de morte filmados em silêncio (só se ouvem os sons da natureza ou, mais raramente, o murmúrio da cidade) acabam paradoxalmente por configurar uma celebração da vida, ou antes, da memória dos que se bateram pela vida. E “celebração da vida” talvez seja o nexo oculto entre este documentário sui generis e a obra-prima de Dreyer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário