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PL que cria "armadilha" para os movimentos populares tramita em urgência na Câmara

Proposta está no radar de Temer e Bolsonaro e tem como pretexto combater o "terrorismo"



Por Cristiane Sampaio
Brasil de Fato | Brasília (DF),5 de Dezembro de 2018 

Alvo do presidente eleito, MST é referência internacional na produção de alimentos agroecológicos / Divulgação / MST

Uma proposta que tramita em caráter de urgência no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), tem preocupado parlamentares do campo progressista e movimentos populares. Registrada como Projeto de Lei 10.431/2018, a medida é de autoria do Poder Executivo e torna possível o bloqueio de bens de pessoas e entidades investigadas ou acusadas de terrorismo.

Se aprovada, a norma valerá para todos os tipos de bens, desde valores e fundos até serviços, financeiros ou não. Na prática, a medida dificulta a operação bancária e atividades de diferentes naturezas de quem for enquadrado nesse tipo de crime.

A principal crítica levantada por deputados que se opõem à medida diz respeito ao conceito de "terrorismo". O líder da bancada do PT na Câmara, Paulo Pimenta, ressalta que o significado do termo ainda não é consenso no país e que, por isso, costuma ser utilizado por atores mais conservadores como manobra política para enquadrar movimentos populares.

Por isso, a oposição entende que o PL como uma "armadilha" para sedimentar o caminho que leva à criminalização oficial dessas entidades – que desde já enfrentam uma ofensiva, embalada especialmente pela vitória de Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições presidenciais deste ano.
“Todos nós sabemos que, no Brasil, não só esse tema não é pacífico, como o presidente eleito, em diversas oportunidades, tem afirmado a intenção de mudar a lei, ampliando não só o conceito como o alcance daquilo que, pra ele, seria considerado uma ação ou organização terrorista”, afirma Pimenta.

Em geral, os alvos de declarações recentes do líder do PSL têm sido o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST). Com atuação nacional, as duas organizações são referência na defesa de direitos e do patrimônio nacional.

Projeto

Além de tratar do bloqueio de bens, o PL 10.431/2018 prevê, em seu artigo 6º, que as sanções aplicadas a pessoas ou entidades consideradas terroristas podem incluir restrições à entrada ou à saída do território nacional. Também determina que podem ser impostos entraves à importação ou a exportação de bens.

Ainda segundo o texto do projeto, o bloqueio de bens poderá ser solicitado em três hipóteses: para executar resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) que tratam de terrorismo, incluindo o seu financiamento, e da proliferação de armas de destruição em massa; por meio de requerimento apresentado por autoridades brasileiras; ou por solicitação de autoridade estrangeira, quando ficar comprovado que o pedido atende a critérios da ONU para a política de combate ao terrorismo.

ONU

O argumento apresentado pelos defensores do projeto em relação ao primeiro ponto é de que o Brasil precisaria endurecer a legislação antiterrorismo para evitar possíveis penalidades determinadas pelo Grupo de Ação Financeira Internacional contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI).

A entidade, que atua de forma intergovernamental, formula padrões para a implementação de medidas que combatam esses tipos de crime e é usada como referência pelo Conselho de Segurança da ONU (CSNU). O texto do PL 10.431/2018 afirma que a proposta tem o objetivo de cumprir as determinações do órgão.

Segundo argumentam líderes governistas, uma eventual negligência em relação ao endurecimento da Lei Antiterrorismo poderia levar o Brasil a um rebaixamento da nota de risco fixada por agências internacionais, que servem de referência a investidores estrangeiros.

A classificação é usada para medir o risco de crédito concedido aos países e por isso avalia as chances de atraso de pagamento ou calote em operações financeiras no mercado global. Para conceder a nota, as agências consideram aspectos como situação fiscal e estabilidade econômica.

O criminalista Patrick Mariano, membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), contrapõe o argumento de que a não aprovação de uma medida como o PL 10.431 poderia rebaixar a nota do Brasil. Ele afirma que os países não são obrigados a cumprir todas as normativas do CSNU. O advogado cita como exemplo a Alemanha, que não segue à risca as diretrizes do GAFI e, apesar disso, tem conceito elevado nas agências internacionais de investimento.

A reportagem apurou que o país tem conceito "AAA", por exemplo, na lista da agência Standard&Poor's (S&P), que está entre as três maiores do mundo. A nota é a mais valorizada da escala de risco e por isso determinados fundos internacionais só investem em países com essa classificação.

“Na verdade, essa história do GAFI é uma falácia, não tem nenhuma comprovação. Tem vários países que não adotaram a própria tipificação do terrorismo e não sofreram sanção econômica nenhuma. O que determina sanção econômica não é a tipificação de uma lei, mas sim o contexto geopolítico da economia”, sublinha Mariano.

Justiça

As normas do CSNU também são alvo de polêmicas judiciais no cenário internacional. Em 2008, por exemplo, a Corte Europeia de Justiça anulou um ato da União Europeia relacionado ao chamado “caso Kadi”, no qual, com base no Conselho, um cidadão teve o nome incluído em uma lista de supostos terroristas. Por conta disso, teve os bens bloqueados. A Justiça afirmou que não havia justificativas legais para a inclusão do nome e que a sanção ignorava o devido processo legal.

O deputado Glauber Braga (Psol-RJ) aponta que os movimentos populares brasileiros podem correr risco semelhante em caso de aprovação do PL porque o texto da proposta não garante o direito de defesa antes do bloqueio dos bens de quem for acusado como terrorista.

O PL tem como um dos pontos o "auxílio direto judicial", exposto no artigo 14 do texto, que prevê a aplicação de sanções dentro de 24 horas após a chegada do processo à Justiça, sem que seja necessária a oitiva do acusado.

No próximo governo, o Poder Executivo poderá, então, ter o caminho mais facilitado para comprometer a operação funcional de entidades e movimentos.

“Eles podem manobrar completamente. Se você, na condição de nação, de governo federal, indica pra ONU que determinado agente político ou líder é terrorista, ele vai entrar pra uma lista [internacional] e o movimento vai ter a perseguição em relação ao financiamento das suas atividades”, alerta o deputado.

Geopolítica

O critério que prevê que o pedido de bloqueio de bens pode ser feito por autoridades estrangeiras é também um dos pontos mais controversos do PL. O dispositivo levanta um debate sobre o cenário internacional que circunda a proposta.

Diante do avanço conservador em diferentes países e também dos interesses externos sobre o patrimônio brasileiro, Paulo Pimenta aponta que o projeto poderia deixar o país mais vulnerável a iniciativas internacionais que colaborem com a criminalização dos movimentos para deixar o caminho aberto para a venda de diferentes ativos.

Entre eles, estariam o pré-sal e a rede de geração e distribuição de energia controlada pela Eletrobras, hoje alvo de um processo de privatização. O deputado acrescenta que a importância econômica do Brasil, aliada a sua localização e à relevância econômica e global de áreas como a da Amazônia, coloca o país no centro das atenções de países como os Estados Unidos, cujo atual presidente, Donald Trump, tem afinidade política com Bolsonaro.

“Evidentemente que o Brasil é, do ponto de vista estratégico, fundamental pra eles. Nós não podemos permitir que o país, mais uma vez, se coloque de joelhos diante de interesses que não são nacionais”, defende o deputado.

Legislação

O líder da bancada do Psol na Câmara, Chico Alencar (RJ), levanta outro aspecto: a nova proposta não seria necessária ao país porque, além de não ter histórico de atos terroristas, o Brasil já possui a Lei Antiterrorismo (Nº 13.260/2016), aprovada durante o governo Dilma Roussef (PT), em meio a pressões feitas pela ala mais conservadora da gestão.

Na época, a proposta foi alvo de protesto por parte de movimentos populares e juristas e por isso teve alguns trechos vetados pela presidenta antes da sanção. O argumento era de que o texto seria vago e abriria brechas para a criminalização de protestos populares, uma vez que o país vive uma tensão política relacionada ao conceito de terrorismo.

Apesar disso, o retorno de dispositivos que foram retirados do projeto é discutido atualmente pelo Senado, por meio do PLS 272/2016, que endurece a Lei Antiterrorismo. Chico Alencar destaca que o PL 10.431, que tramita na Câmara, tem relação política com o PLS 272.

“Na verdade, sob a capa do unânime repúdio a atos terroristas, que são covardes e matam tantos inocentes, ele [PL 10.432] está nessa esteira que criminaliza movimentos sociais, porque basta, unilateralmente, um governo declarar uma pessoa suspeita pra ela já ter seus bens bloqueados e ficar numa situação de insolvência e quase aprisionamento”, afirma.

Articulação política

Bancado pelo governo de Michel Temer (MDB), o PL 10.431/18 foi protocolado em junho deste ano, mas, em meio ao recesso parlamentar de julho e também do período eleitoral, em que o Legislativo desacelera as pautas, teve uma tramitação inicial silenciosa e ficou de fora dos holofotes.

A proposta veio à tona nas últimas semanas, depois de uma articulação conjunta envolvendo lideranças do governo que, no último dia 20, apresentaram um requerimento pedindo a apreciação do PL pelo plenário em regime de urgência.

A mobilização envolveu membros de partidos como MDB, PSDB, DEM, PP, Avante, PRB, Patriota e PSC, todos situados no espectro político da direita. Como a urgência foi aprovada, o PL passou a integrar a lista de votações do plenário da Casa, embora também tramite de forma paralela nas Comissões de Justiça e Cidadania (CCJ) e Finanças e Tributação (CFT).

Nos dois colegiados, a matéria ainda está sem relator e não passou por debate. Apesar disso, pode ser votada pelo plenário a qualquer momento.

Segundo apurações feitas pela reportagem, nos bastidores do mundo político, a pauta estaria sendo articulada diretamente no Congresso Nacional não só pelo governo Temer, mas também por interlocutores de Bolsonaro.

O nome do ex-juiz federal Sérgio Moro, já indicado pelo novo presidente como futuro ministro da Justiça, é citado nos bastidores da Câmara dos Deputados como um dos atores que estariam pressionando os parlamentares para a aprovação do PL 10.431.

Lideranças do governo também teriam pedido ao presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), prioridade para a pauta, que passou à frente até mesmo da proposta que prevê a autonomia do Banco Central, uma das matérias que estão na cartilha neoliberal de Temer.

Edição: Daniel Giovanaz

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