![]() |
Créditos da foto: (Divulgação) |
Da Carta Maior, 5 de Dezembro, 2018
Por Carlos Alberto Mattos
A quase 40 anos de sua estreia, depois de cinco anos censurada, a peça Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho, chega pela primeira vez ao cinema pelas mãos de Jorge Furtado. A adaptação, que entra em cartaz nesta quinta (6/12), avança também 40 anos no tempo, atualizando as questões geracionais que faziam rasgar os corações de um pai e um filho por causa da política.
Eu assisti à montagem original carioca, dirigida por José Renato no Teatro Villa Lobos, em 1979. Estavam no elenco Raul Cortez, Sonia Guedes, Ary Fontoura, Lucélia Santos, Vera Holtz e outros atores ligados ao Teatro de Arena de São Paulo, aliás fundado por José Renato. A alegria de ver o texto de Vianninha sendo liberado se misturava com a tristeza de viver numa ditadura que, a gente sabia, ainda custaria a terminar.
A peça dialogava com Eles Não Usam Black-tie, de Gianfranceso Guarnieri, por tratar também de um conflito entre pai e filho no âmbito da consciência política. Rasga Coração era, porém, mais ousada em matéria de linguagem teatral. Dois tempos se entrecortavam no palco. Nos anos 1930, Custódio Manhães Jr. (também chamado de Manguari Pistolão), jovem libertário, se batia com o pai integralista. Na década de 1970, Custódio havia se tornado um funcionário público medíocre, mas que conservava os ideais de luta do passado. Seu filho, Luca, era um hippie que adotava outras bandeiras e achava o pai um mero conservador.
Que as esquerdas envelhecem, disso ninguém tem dúvida. Mas Vianninha chamava atenção para o fato de que nem tudo o que se apresenta como novo é realmente novo. No programa da peça (veja aqui), ele anunciava o texto como "uma homenagem ao lutador anônimo político, aos campeões de lutas populares; preito de gratidão à ‘Velha Guarda’: à geração que me antecedeu, que foi a que politizou em profundidade a consciência do país”.
Jorge Furtado, em roteiro concebido junto com Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno, faz ecoar o dilema político-familiar na atualidade, ainda que sem referências diretas ao contexto vigente. Custódio agora vive entre os anos 1970, quando militava com colegas e levava pauladas da polícia, e os dias de hoje, consumidos nos relatórios do serviço público e no fechamento das contas domésticas. João Pedro Zappa e Marco Ricca vivem Custódio em cada etapa, com igual propriedade.
Luca agora é um jovem hipercontemporâneo, vegano, que veste saias, pinta as unhas e se importa mais com a saúde do planeta do que com as pautas sociais defendidas pelo pai. Se na peça Luca era expulso do colégio por recusar-se a cortar o cabelo, no filme ele participa da ocupação de uma escola cuja direção quer impor a discriminação de gêneros a partir do vestuário dos alunos. (Aqui vale um parênteses: os estudantes invadem a escola, quebram vidros e vandalizam a sala de administração, comportamento não condizente com a realidade da maioria das ocupações, que procuram ser cuidadosas com o patrimônio ocupado.)
A História se repete e os problemas, no fundo, são sempre os mesmos – é o que parece dizer Rasga Coração, a peça e o filme. O novo de ontem pode sempre ser encarado como o velho de hoje, uma vez que as agendas políticas não são estáticas, e várias delas correm em paralelo. O choque entre Custódio e Luca se dá entre dois conceitos de revolução – um coletivo, de inspiração marxista e que no fundo aceita o sistema para lutar de dentro; e outro voltado para o comportamento individual e a micropolítica. A dificuldade de convivência e de entendimento entre esses dois pólos é o que faz rasgar o coração.
Essa discussão ecoa na nossa atualidade política, onde vemos algumas rachaduras entre a gestão política de uma centro-esquerda que disputa o poder e uma esquerda mais empenhada nas lutas identitárias e aspirando a formas de ação direta. Não são poucos os desentendimentos que terminam enfraquecendo a resistência contra o avanço do conservadorismo entre nós.
Voltando ao filme, Rasga Coração segue estrutura similar à da peça, promovendo paralelos e espelhamentos constantes entre passado e presente, como a reforçar o discurso central da "repetição em outros termos". A figura do Lorde Bundinha (George Sauma) atravessa os dois períodos como uma segunda consciência de Custódio, aquela que põe em crise suas convicções e pisca um olho para suas contradições. Na peça, Bundinha era um malandro dos anos 1930, no filme é um desbundado dos 70.
Esse personagem pretende colocar em cena uma expansividade contrastante com a sobriedade dos demais. O resultado, no entanto, é repetitivo e às vezes enfadonho. Outra intenção de alívio cômico é personificada pela esposa Nena, com suas preocupações exorbitantes de dona de casa. A verve e o talento de Drica Moraes nem sempre impedem que o papel caia na caricatura.
A exposição muito explícita das argumentações às vezes soa didática, evidenciando talvez um envelhecimento do texto, que na época precisava aproveitar a oportunidade para ser o mais claro possível.
Não ficaram resquícios de teatro nessa transposição, que Furtado conduz com segurança e transparência. A opção por sucessivos diálogos em plano médio podem sugerir uma formatação televisiva algo limitativa, que se rompe em momentos mais dramáticos ou histriônicos.
Na meia-hora final, quando o antagonismo entre Custódio e Luca se condensa em dois grandes diálogos cruciais, os atores transcendem a demarcação rígida e fazem duas das melhores cenas do filme. O rompimento surge, então, como uma tomada de consciência decisiva para o pai e para o filho. Há coisas difíceis de conciliar, mas a vida segue em frente quando o respeito mútuo prevalece.
Nenhum comentário:
Postar um comentário