A retomada da democratização do Brasil, quando ocorrer, terá que produzir uma nova política da memória. Tal como o sono da razão, a amnésia também cria monstros. A ausência de consciência histórica foi central para que um discurso como o de Bolsonaro ganhasse a força que ganhou.
Do Blog da Boitempo, 23/11/2018
Por Luis Felipe Miguel.
Em seu romance Andamios, publicado em 1997, o escritor uruguaio Mario Benedetti pôs em cena um ex-perseguido político que depois de anos de exílio retornava ao país. Perdido em meio a transformações que não conseguia compreender, num ambiente político que não casava com aquele de seu tempo de militância, ele pede ajuda a um amigo, que explica, sem rodeios, que é inútil tentar ligar as lembranças do passado com a realidade presente: “Democracia es amnesia”1. A ironia do romancista tem boa razão de ser. De fato, a experiência da redemocratização na América Latina, mas também em outros lugares do mundo, em muitos sentidos envolveu uma dose significativa de esquecimento voluntário.
Se Benedetti apresentava seu veredito para o Uruguai, o que dizer do Brasil? Mais do que em qualquer outro país do subcontinente, tivemos uma transição travada. Os crimes da ditadura nunca foram punidos e o trabalho de busca pela verdade histórica começou tardiamente e sob grande pressão. A lembrança do regime militar é tão tênue que a nostalgia em relação a ele é produzida de forma deliberada para gerar dividendos políticos. O homem que foi eleito no mês passado para ocupar a Presidência da República apresenta, como seu herói pessoal, o mais notório torturador de nossa história.
A ausência de memória foi, em primeiro lugar, o esquecimento dos crimes do regime autoritário, o que não apenas garantiu que seus responsáveis não seriam punidos mas também propiciou a manutenção de boa parte deles na elite governante. Não faltaram argumentos pragmáticos (e dignos de atenção) para justificar esta postura. Seria necessário manter a estabilidade de governos civis frágeis e evitar tensões desnecessárias na arena política. A única estratégia prudente seria a da “página virada”, que supõe que o passado está morto, enterrado, e o jogo recomeça com todas as contas zeradas. A busca pela justiça era anatematizada como “revanchismo”.
Nesse enquadramento, o problema toma a forma de um embate entre os imperativos abstratos da justiça e a necessidade pragmática de evitar, de imediato, o retrocesso político. É incorreto, porém, equivaler esse dilema a outro, entre a punição e o perdão. Numa passagem bem conhecida de A condição humana, Hannah Arendt enfatiza a importância que a promessa e o perdão têm na vida política. A promessa reduz a incerteza de resultados, característica de toda a ação, isto é, da interação comunicativa entre os seres humanos, dando-nos pontos de referência fixos para o futuro. E o perdão é necessário diante do inevitável fracasso das promessas, que não são capazes de barrar o irresistível fluxo da incerteza e portanto nunca, ou quase nunca, se cumprem. Mas o perdão não significa o esquecimento, nem mesmo abdicar da possibilidade da punição. Afinal, punir e perdoar, para a filósofa alemã, são alternativas, não opostos, e estabelecem uma relação complexa: não podemos perdoar aquilo que não poderíamos punir, nem temos como punir o imperdoável2.
Cada vez que um chefe militar louvou a ditadura ou deblaterou contra uma comissão da verdade sem gerar qualquer reação, fortaleceu-se a compreensão de que os criminosos de Estado estavam além da punição e do perdão. Era a estratégia do pragmatismo absoluto. Porém, como a conjuntura política recente no Brasil demonstrou de maneira cabal, os problemas não desaparecem ao serem empurrados para baixo do tapete. O enfrentamento com eles é apenas adiado.
Mas há esquecimento também por parte dos opositores das ditaduras, que, com as exceções de praxe, adotaram o realismo pragmático, não hesitando em formar alianças com os antigos algozes e endossando, sem maiores controvérsias, a política da “página virada”. Contribuíram, assim, para apagar todas as máculas e a limpar até mesmo as piores biografias, em nome de uma democracia que a todos acolhia, sem distinções. Uma democracia cega, como se representa a justiça, mas sem a balança e a espada, pois abdicou do direito de discernir e, mais ainda, de punir.
Esquecimento, ainda, de antigos radicais e utopistas, convertidos à “política do poder”, desejosos de participar das novas coalizões de velhos adversários, que empalmavam os governos. A moderação devia cintilar em todos os discursos. As antigas aversões foram esquecidas, como a personagem de Benedetti, que deixara para trás sua “alergia ao imperialismo”. Por influência da política acomodatícia dominante, mas também, em grande medida, do colapso do mundo comunista, que estreitou a gama de opções políticas aceitáveis, nas democracias, ao que parece, todos os gatos deveriam ser pardos, comedidos e centristas.
A retomada da democratização do Brasil, quando ocorrer, terá que produzir uma nova política da memória. Tal como o sono da razão, a amnésia também cria monstros. A ausência de consciência histórica foi central para que um discurso como o de Bolsonaro ganhasse a força que ganhou. Na votação do impeachment de Dilma, a menção que o ex-capitão fez a Brilhante Ustra ainda era uma provocação cruel destinada a espezinhar a Presidente3. Pouco mais de dois anos depois, camisetas e cartazes de “Ustra vive” ostentados por jovens militantes revelavam que o “dr. Tibiriçá” dos porões da ditadura havia, sim, se convertido em ídolo da direita radicalizada. Por isso, independentemente da possibilidade efetiva de punir – ou de perdoar –, o conhecimento sobre o passado parece ser uma condição necessária para a edificação de uma ordem política renovada: “estabelecer e publicar a verdade sobre o passado recente”, como dizem Negri e Hardt, citando exemplos da América Latina e da África do Sul e observando que a “verdade”, no sentido bem concreto da documentação factual, exerce aqui um papel subversivo e regenerador, digno da melhor tradição iluminista4.
Mas há outra dimensão a ser levada em conta. A democracia precisa possuir uma memória de si mesma, isto é, o reconhecimento de que a democratização é um processo sempre inacabado, que precisa constantemente se conectar com seus ideais para renovar suas forças no embate contra a acomodação e a oligarquização. Caso contrário, veremos outro tipo de esquecimento, o esquecimento das promessas centrais que a própria democracia faz: as promessas da igualdade política entre os cidadãos e da construção da autonomia coletiva, isto é, a instauração de uma sociedade em que as pessoas, em conjunto, são capazes de definir os rumos de suas vidas. A democracia que lembra de si mesma é a democracia que não se contenta com o ritual eleitoral, nem se acomoda à opressão e à dominação. Para ser mais sólida, a democracia não pode se limitar ao mínimo – deve buscar uma aproximação sempre maior a seu próprio ideal normativo original. É aí que a memória leva à imaginação, à busca por novas e mais igualitárias formas de organização do mundo social.
Notas
1 Mario Benedetti, Andamios (Madrid: Alfaguara, 1997, p. 19).
2 Hannah Arendt, A condição humana (Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987), p. 253.
3 Ver Andréia da Silva Daltoé e Juliene da Silva Marques, “A im(p)unidade parlamentar: ditadura e memória” (Memorare, vol. 4, nº 3, 2017, pp. 61-77).
4 Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (Paris: Exils, 2000), p. 201.
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Para aprofundar a reflexão sobre o sentido da democracia e sua relação com os padrões de dominação presentes na sociedade, recomendamos a leitura de Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória, de Luis Felipe Miguel. Mario Benedetti também é o autor selecionado para a seção de poesia da última edição da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, número dedicado à reflexão sobre a crise brasileira.
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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém oBlog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colabora com os livros de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016) e O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018). Seu livro mais recente é Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.
Grupo de Pesquisa Sul-Sur
Este grupo se insere numa das linhas de pesquisa do LABMUNDO-BA/NPGA/EA/UFBA, Laboratório de Análise Política Mundial, Bahia, do Núcleo de Pós-graduação da Escola de Administração da UFBA. O grupo é formado por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e de diferentes instituições públicas de ensino e pesquisa.
Buscamos nos apropriar do conhecimento das inter-relações das dinâmicas socioespaciais (políticas, econômicas, culturais) dos países da América do Sul, especialmente do Brasil, da Bolívia, da Argentina e do Chile, privilegiando a análise histórica, que nos permite captar as especificidades do chamado “subdesenvolvimento”, expressas, claramente, na organização das economias dos diversos povos, nos grupos sociais, no espaço.
Nosso campo de investigação dialoga com os campos da Geopolítica, Geografia Crítica, da Economia Política e da Ecologia Política. Pretendemos compreender as novas cartografias que vêm se desenhando na América do Sul nos dois circuitos da economia postulados por Milton Santos, o circuito inferior e o circuito superior. Construiremos, desse modo, algumas cartografias de ação, inspirados na proposta da socióloga Ana Clara Torres Ribeiro, especialmente dos diversos movimentos sociopolíticos dessa região, das últimas décadas do século XX à contemporaneidade.
Interessa-nos, sobretudo, a compreensão e a visibilidade das diferentes reações e movimentos dos países do Sul à dinâmica hegemônica global, os espaços de cooperação e integração criados, as potencialidades de criação de novos espaços e os seus significados para o fortalecimento da integração e da cooperação entre os países do Sul, do ponto de vista de outros paradigmas de civilização, a partir de uma epistemologia do sul. Através das cartografias de ação, buscamos perceber as antigas e novas formas de organização social e política, bem como os espaços de cooperação SUL-SUL aí gestados. Consideramos a integração e a cooperação Sul-Sul como espaços potenciais da construção de novos caminhos de civilização que superem a violência do desenvolvimento da forma em que ele é postulado e praticado.
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