Do Blog da Boitempo, 1 de Outubro, 2018
Por Christian Ingo Lenz Dunker.
Uma pesquisa recente, conduzida por Pablo Ortellado, analisou 38 milhões de postagens nas redes sociais revelando aspectos intrigantes sobre os eleitores de Jair Bolsonaro. São antipetistas com forte indisposição para com a política e suas instituições conexas, entendidas como não confiáveis e desonestas. Estão indignados com métodos políticos tradicionais e querem uma mudança radical. Além disso, eles são anti-Globo. Com alguns ajustes e acomodações, essa seria também a atitude média de um simpatizante da esquerda “esclarecida”, na expectativa da autocrítica petista. Por mais paradoxal que seja, trata-se de um voto rico, masculino e de protesto. Em suma: o voto antipetista vem do pior tipo de esquerda, aquele que diante de uma dificuldade rapidamente se torna direita.
A análise dos posts revelou coisas surpreendentes sobre esse subgrupo específico. Nele não há nacionalismo, apesar do uso ostensivo da bandeira ou do verde e amarelo pelo candidato. O coeficiente de militância homofóbica ou preconceito racial explícito é baixo. Trata-se de uma maneira muito particular de traduzir e de usar o que Bolsonaro efetivamente diz. Tributando isso ao discurso de campanha, argumentando que não se deve acreditar em tudo o que ele diz, eles parecem estar mais atentos à enunciação do que ao enunciado do discurso. Aqui, por experiência social concreta, as mulheres têm uma leitura realmente diferente, que as imuniza contra esse efeito. Elas sabem que esse tipo de entendimento “na paralela”, de “código intragrupo”, envolvendo “ambiguidade e sedução”, particularmente quando vem de figuras de autoridade, é o mesmo tipo de parceria que silencia violências e invisibiliza iniquidades. Ou seja, não é apenas porque Bolsonaro diz coisas como “só não te estupro porque você não merece” dentro da Câmara dos Deputados que ele desafia as eleitoras, mas porque ele propõe uma enunciação que convida à leniência com a opressão.
Outros candidatos extravagantes foram eleitos exatamente porque seu eleitorado não acreditava na mensagem explícita, nem tomava ao pé da letra a truculência e a ofensividade do que seu líder colocava em discurso. Essa distância, que vai da ironia ao cinismo, cria sua própria oposição potencial. Ele captura a vergonha suprimida no cotidiano em uma vingança triunfal do nerd. Esse parece ter sido o caso da eleição de Trump, na qual negros e mulheres ficaram em casa em vez de votar porque afinal supunham que ninguém iria acreditar no conto da cenoura “Great America”. Este é também o erro estratégico dos que criticam Bolsonaro dizendo que ele é racista, homofóbico ou fascista, que ele não se importa com museus queimando e assim por diante. Isso tudo pode ser verdade, mas não é o ponto decisivo, pois diante desta crítica é como se ele respondesse aos seus eleitores: vocês sabem que todos nós somos um pouco assim, não é? Mas, ao contrário de Lula, eu não fui pego.
O desdém é uma atitude politicamente perigosa. A médio e longo prazo ela instiga uma curiosa identificação com o desdenhado. O clube dos que acreditam que a terra é plana, que vacina causa autismo ou que Hitler era de esquerda costuma sofrer muito com o sentimento de irrelevância. Para eles, crenças erráticas assumem um valor curiosamente inclusivo – neste caso, reforçado pela atitude de indiferença por parte do establishment. Crenças erráticas fazem parte da reação aos artistas, aos professores ou aos intelectuais que possuiriam uma prerrogativa da qual eles estariam excluídos. Esses que não são uma minoria constituída nem reconhecida, sentem-se apenas irrelevantes indignos até mesmo de se portarem como vítimas. De certa forma, gostariam de ter cotas para eles também, por isso são contra privilégios. Sentem que as mulheres ganham espaço e não entendem por que, afinal, se elas podem ser feministas, eles não poderiam então ser machistas.
O voto útil e o voto fútil
Quero crer que as próximas eleições serão decididas pela combinação entre o voto flutuante dos que consideram a própria situação de voto uma situação aversiva porque expõe sua inadequação discursiva, e os que diante da ausência de convicção acirram o voto antipetista. Ambos alimentam-se da polarização, mas por razões inversas. Enquanto o voto fútil escolhe Bolsonaro pela sua enunciação, que funciona como uma espécie de receptáculo vazio de opiniões, o voto útil escolhe Bolsonaro por seus enunciados, porque ele é a oposição fiel e consistente ao retorno do PT. Isso explicaria porque a campanha dele inclui memes, posts e comentários erráticos, que dizem “não me leve a sério”, mas também brados de autoridade e ameaças específicas, que dizem: “cuidado comigo”.
Os analistas ainda não chegaram a uma boa hipótese sobre por que os dois grupos capazes de desequilibrar a eleição são os mesmos que potencialmente teriam uma relação de reconhecimento pelos serviços prestados pelo PT, ou seja: a nova classe média e as camadas A e B. Lembremos que o petismo esteve associado com esse fenômeno que massa que foi a passagem de milhões de pessoas da miséria para a pobreza e da pobreza para a classe média consumidora. Lembremos também que durante os anos de lulismo, apesar da redução da desigualdade social, houve um incremento mais substancial ainda dos ganhos para os mais ricos. É certo que grandes promessas levam às maiores decepções, pois é preciso um laço forte para criar o sentimento de traição. Voltar atrás (nos dois sentidos: o de pedir desculpas e o de regredir socialmente) é algo muito difícil do ponto de vista psíquico. Frequentemente isso significa humilhação e perda narcísica, como se a partir de então nossa palavra ficasse sem crédito na praça. Neste ponto, o voto útilreencontra um dos piores defeitos da representação social do petismo: sua dificuldade de fazer autocrítica. Sem autocrítica ele não consegue recuperar a força da promessa fundamental: errei e não vou fazer de novo!
O voto fútil, ao contrário, parece viver da surpresa e irreverência de um candidato que se apresenta como autêntico, que fala como uma pessoa comum, que pensa em soluções simples, que todos pensariam, e que tem respostas contundentes. Ainda que boa parte das “mitadas” disponíveis na internet sejam vexatórias quando olhadas de perto, ou simplesmente falsas do ponto de vista da relação entre o título do vídeo e seu conteúdo, elas são retoricamente eficazes. Tais peças de propaganda confirmam pragmaticamente que um grupo muito grande de pessoas pensando a mesma coisa torna aquilo mais “real”, ainda que não seja “verdadeiro”. Isso cria a substância mais preciosa para alguém que se sente enjeitado socialmente: confiança.
O voto útil tem outra estrutura discursiva. Ele está assentado em uma história de conversas e embates nos quais honestidade e indignação foram assentadas na crítica ostensiva ao petismo. O sujeito em questão aqui argumentou que nada seria pior que Dilma. Defendeu o impeachment em nome da família. Tem amigos que bateram panelas no condomínio. Depois viu-se um pouco constrangido com o governo Temer e a seletividade da Lava Jato. Defendeu timidamente a cassação de Temer, mas achava deselegante falar em golpe. No fundo, foi enganado, como tantos outros, por uma direita gananciosa, que quis apressar as coisas e governou 30 meses em nome de ninguém. Logo, muito justo, que o mesmo ninguém aderiu a candidaturas como as de Meirelles e Alckmin.
Nesse oceano de ressentimentos e decepções, uma coisa passou a funcionar como ponto fixo. O fato inegável, verdadeiro e real, de que Lula foi preso. Surge assim um novo princípio, um novo nível de traição, uma súmula de aprendizagem que curiosamente ouvi também de vários amigos de esquerda: “corto minha mão, mas nunca mais voto no PT”. Neste caso, a raiva advém do fato de que uma parte grande da esquerda teria sido leniente com o PT. Via coisas erradas, mas olhava para o outro lado reconhecendo um cenário pior. Esta lógica do “menos pior” tem, portanto, uma história. Ela não acossa apenas a consciência da esquerda, mas também, curiosamente esse tipo de esquerda que agora tornou-se direita: anti-Globo, anti-políticos, anti-instituições e que pratica o “argumento ético”. Depois de tudo, esse mesmo grupo reencontra-se agora, e mais ainda no segundo turno, com a humilhação de, mais uma vez, votar no menos pior.
Um elemento decisivo nessa conta é o movimento #EleNão. Um movimento coletivo que retoma o início da conversa em 2013. Movimento que subverte a oposição entre “nós” e “eles” com a ideia de que “pode ser qualquer um” desde que não seja “este um”. Altera-se a gramática. Em vez de contar porque faz parte de um grupo é preciso reconhecer características daquela única pessoa. Olhar para este e não para o grupo ao qual ele pertence é um tratamento possível para o estado geral de monólogo de surdos, mas é um movimento decisivo para suspender a violência segregatória que se apossou do país. As mulheres trouxeram para a conversa uma dialética imprevista. Enquanto discutíamos até onde vai a família e a partir de onde começa o espaço público, o discurso do #EleNão percebeu que dentro da família há mulheres e homens, ainda que não divididos nesta ordem em todas as famílias.
Por isso, a pergunta fundamental para entender até onde vai esse antipetismo é saber quanto esses homens ricos e emergentes serão capazes de suportar voltar atrás, ouvir o que o outro fala e o que ele diz, de modo a suportar que seu sentimento de futilidade momentânea não significa que eles se tornarão inúteis para sempre.

Boitempo nas eleições // Na nossa cobertura das eleições 2018 realizamos uma série de ações que buscam contribuir com a reflexão coletiva durante o período, entre as quais a publicação de textos inédito no Blog da Boitempo, vídeos na TV Boitempo e um serviço gratuito de indicações de leituras pelo WhatsApp, com curadoria da equipe editorial. Reflexões de Luis Felipe Miguel, Boaventura de Sousa Santos, Vladimir Safatle, Flávia Biroli, Esther Solano, Ricardo Antunes, Mauro Iasi, Christian Dunker, Rosane Borges, Mouzar Benedito, Dênis de Moraes, Flávio Aguiar, Felipe Brito, entre outros. Clique aqui para conferir.
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Christian Dunker foi um dos convidados do último episódio do podcast “Mamilos” sobre “Os desafios da democracia” junto com Pablo Ortellado, Ana Olmos e Cyrus Afshar. Vale a pena conferir:
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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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