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O tempo dá, o tempo tira...



Do GGN, 24 de Setembro, 2018
por Mariana Nassif


O tempo é tão importante no Candomblé que é considerado um Orixá. A frase da cantiga que abre este texto traz consigo uma profunda mensagem de que não importa de fato o que ou quanto estamos fazendo, desejando, movimentando – ou qualquer outro gerúndio aplicado às ações – quem determina o que acontece ou não é só o tempo.

O culto a este Orixá é tão complexo quanto o entendimento da cantiga: é um Nkisi que aparece raríssimas vezes em terra, contempla poucos filhos numa casa de santo e está sempre representado por um mastro com bandeira branca a céu aberto, característica que identifica os ilês para os olhos treinados. Também conhecido como Iroko, suas lendas e histórias são sempre cercadas de muitos mistérios, incompreensíveis aos olhos e ouvidos humanos.
Trazendo o orixá para a vida real e cotidiana, também é o nosso tempo um dos grandes mistérios incompreensíveis desta existência. Quantos de nós, atualmente, não vive sob as pressões da ansiedade ou debaixo das demandas da depressão, quase nunca satisfeitos com o que há aqui e agora? Em menor ou maior graus de sensibilidade e sentimentos, basta uma roda de conversas um pouco mais profunda para perceber que o lidar com o tempo é algo que procuramos cada vez mais, mesmo que sejam incansáveis as respostas e variações daquilo que dá conta de que disso, do tempo, nós não teremos o controle.

Esta mudança de vida, de ritmo, de um tanto, enfim, trouxe experiências intimamente relacionadas à forma como me relaciono com o tempo, e também o Tempo, o orixá, confesso, mais por necessidade do que por desejo. Respira, aceita, respira, chora, respira, fica com medo de que aquilo é um sinal, respira... absorve o tempo e absolve a alma, o controle não é possível.

Segundo momento, vale saber que de todos os movimentos que me trouxeram pra uma cidade litorânea o que mais garantia alguma estabilidade é o desenvolvimento de meus afazeres profissionais, estes que germinam o sustento. Mas, para o Tempo, estabilidade não é fator considerável, acho que não dá pra deixar que ele nos perceba assim, estáveis, que ele logo quer brincar. É muito amigo de Iansã e seus ventos e movimentos, esse Tempo. Ainda bem.

A retomada da leitura, das práticas mais solitárias, o prazer em cozinhar com menos pressa de me manter conectada e em busca de. O sono de qualidade, sem interferências e sem uma tela brilhante frente aos olhos. O conversar por voz, tão raro na era do WhatsApp. Recursos que parecem tão banais e que podem ser tão preciosos podem depender de tempo e algum perrengue pra se fazerem lembrados.

O contato comigo mesma, com minhas aflições e medos, com meus sorrisos e alegrias, o negociar interno com as expectativas – elas existem, sim, e esbravejam quando são renegadas, jogadas aos braços da falsa cadeia evolutiva que culpabiliza o ego. Experimenta não desenvolver devagarinho, com cuidado e com carinho, pra ver como dói.

A própria prática espiritual, antes ritualizada semanalmente, na Umbanda, hoje muito mais espaçada e sem data definida previamente no Candomblé – o que será que eu posso e o que não posso fazer? Viver esta mudança toda sem o encontro (considero eu) físico com as entidades que me acompanham fez ampliar ainda mais a sensação de solidão. Houve momentos em que pensei que todas as escolhas que fizera estavam equivocadas, erradas mesmo, onde eu estava com a cabeça pra sair de São Paulo pra Ubatuba assim?

Respira, entende, respira, respira... dorme, experimenta a insônia, tradicional pra mim na quaresma (resquícios da vida de umbandista, onde este é um dos períodos mais pesados do ano, em termos de energias densas e obscuras pairando pela Terra), come bem, come mal, não come.

Passou, transformou, progrediu. Não foi tão rápido assim. Tampouco tão demorado a ponto de encaixar no julgamento de que perdi o tempo disso, pra isso, com isso. Foi no tempo que o Tempo deseja que seja. E isso, ah, veja bem: não há como ser controlado, nem por mim, nem por ninguém.

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