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Trabalhos invisíveis. Ou o que o feminismo tem a ensinar para a esquerda?

As mu­lheres tra­ba­lham quando nin­guém vê que estão tra­ba­lhando. A in­vi­si­bi­li­zação do tra­balho da mu­lher foi ob­tida, ao longo da his­tória, por meio de dis­po­si­tivos ex­tre­ma­mente so­fis­ti­cados. 


Do Correio da Cidadania,07 de Março, 2017
Por Tatiana Roque


As mu­lheres tra­ba­lham quando nin­guém vê que estão tra­ba­lhando. A in­vi­si­bi­li­zação do tra­balho da mu­lher foi ob­tida, ao longo da his­tória, por meio de dis­po­si­tivos ex­tre­ma­mente so­fis­ti­cados. A na­tu­ra­li­zação foi o mais forte deles. O tra­balho do­més­tico, es­pe­ci­al­mente aquele re­la­ci­o­nado aos cui­dados – com a casa, com os fi­lhos e até com o ma­rido -, foi in­cor­po­rado aos cos­tumes como uma dá­diva: um tra­balho feito por amor. But they say love, we say unwaged work, já dizia Silvia Fe­de­rici, mi­li­tante do mo­vi­mento por sa­lá­rios para o tra­balho do­més­tico.

Tem sido uma tô­nica no fe­mi­nismo, desde os anos 1970, o re­co­nhe­ci­mento da es­pe­ci­fi­ci­dade do tra­balho das mu­lheres, assim como a de­núncia de sua in­serção de­si­gual no mer­cado de tra­balho. Sim, as mu­lheres querem re­co­nhe­ci­mento pelo seu tra­balho, querem ga­nhar tão bem quanto os ho­mens, querem ter di­reito a uma vida pú­blica. Mas é muito mais do que isso.

A es­pe­ci­fi­ci­dade do tra­balho das mu­lheres, como foi his­to­ri­ca­mente de­ter­mi­nada, aponta um ca­minho para a ur­gente re­de­fi­nição da ca­te­goria de tra­balho como um todo.

Que­remos que toda a es­querda preste mais atenção ao que es­tamos di­zendo quando mos­tramos que, há muitos sé­culos, temos re­a­li­zado di­versos tra­ba­lhos in­vi­sí­veis en­quanto tal. Neste exato mo­mento, em que o pro­cesso de va­lo­ri­zação passa cada vez mais pela re­a­li­zação de tra­ba­lhos in­vi­sí­veis, nossa ex­per­tise pode ajudar vocês a saírem do im­passe em que se me­teram, sem pre­ci­sarem con­ti­nuar re­pro­du­zindo ad ae­ternumos dis­cursos que des­cre­viam o mundo do tra­balho no sé­culo 19, ou até me­ados do sé­culo 20, mas que estão to­tal­mente ca­ducos para ex­plicar o que se passa no mundo atual.

As re­la­ções ca­pi­ta­listas avançam a passos largos sobre um ter­reno que, até aqui, não era con­si­de­rado como âm­bito da pro­dução de valor: o ter­reno da re­pro­dução so­cial. Fe­mi­nistas mar­xistas de­nun­ciam, desde os anos 1970, o campo da re­pro­dução so­cial como um campo de pro­dução ativa, só que in­vi­si­bi­li­zado en­quanto tal pelo mar­xismo. O tra­balho do­més­tico, con­dição da ex­plo­ração ca­pi­ta­lista, foi na­tu­ra­li­zado e ne­gli­gen­ciado nos âm­bitos do que sempre se re­co­nheceu como tra­balho: o tra­balho as­sa­la­riado e a pro­dução in­dus­trial. Essa in­vi­si­bi­li­zação foi fruto de um ima­gi­nário po­lí­tico que dava cen­tra­li­dade ao tra­ba­lhador macho e branco, in­capaz de in­cor­porar na te­oria do valor todo um campo de re­le­gado à es­fera pri­vada, ao tra­balho fora da fá­brica ou ao tra­balho não pago de modo geral.

Essas fe­mi­nistas, as­so­ci­adas ao mo­vi­mento por Sa­lá­rios para o Tra­balho Do­més­tico (além de Fe­de­rici, Ma­ri­a­rosa Dalla Costa, Selma James e ou­tras), mos­traram que o tra­balho das mu­lheres era cen­tral para a re­pro­dução da força de tra­balho, logo para a ma­nu­tenção das re­la­ções ca­pital-tra­balho, em que se es­ta­be­lece um con­trato entre o ca­pi­ta­lista e o tra­ba­lhador livre – cuja li­ber­dade era ga­ran­tida pelo cui­dado dis­pen­sado por uma mu­lher em casa, tra­balho esse in­ter­pre­tado como afeto, ou seja, na­tu­ra­li­zado como não-tra­balho.

Ou­tros dis­po­si­tivos de in­vi­si­bi­li­zação foram tra­zidos à baila, como as tec­no­lo­gias en­vol­vidas na pro­dução dos gê­neros, dos corpos se­xu­ados e da fa­mília, todos re­la­ci­o­nados ao tra­balho as­sa­la­riado e à ló­gica da acu­mu­lação ca­pi­ta­lista. Além disso, a partir da crí­tica de fe­mi­nistas ne­gras, como An­gela Davis (1), à pers­pec­tiva das brancas de classe média, para quem o tra­balho do­més­tico era visto como uma prisão, o ter­reno da re­pro­dução so­cial foi ex­pan­dido para in­cluir a ex­pe­ri­ência das mu­lheres ne­gras, desde a es­cra­vidão até as po­lí­ticas ra­cistas do wel­fare. Elas mos­traram que o tra­balho e os corpos das mu­lheres ne­gras foram cen­trais para o fun­ci­o­na­mento de campos im­por­tantes da eco­nomia, como as plan­ta­tions.

Hoje, quando o tra­balho afe­tivo, cog­ni­tivo e cor­poral é com­po­nente cen­tral da va­lo­ri­zação ca­pi­ta­lista, quando o tra­balho passa a ser ex­plo­rado em todas as di­men­sões da exis­tência, as crí­ticas fe­mi­nistas à con­cepção mar­xista de tra­balho ad­quirem uma im­por­tância re­no­vada. As mu­danças no mundo do tra­balho estão no foco da ar­ti­cu­lação de di­fe­rentes mo­vi­mentos – tanto fe­mi­nistas quanto de ne­gros, ne­gras e imi­grantes – em torno do con­ceito de “re­pro­dução so­cial” (2).

O pa­ra­digma da re­pro­dução so­cial au­menta a ca­pa­ci­dade des­cri­tiva do que se con­ven­ci­onou chamar “tra­balho cog­ni­tivo”. Esse viés é ex­plo­rado por pen­sa­doras fe­mi­nistas como Fe­de­rica Gi­ar­dini, que tira daí as se­mentes de uma nova eco­nomia po­lí­tica (3). Para além da va­lo­ri­zação de ca­pa­ci­dades afe­tivas, re­la­ci­o­nais e lin­guís­ticas, des­ta­cadas pelas te­o­rias do ca­pi­ta­lismo cog­ni­tivo, há a na­tu­ra­li­zação de inú­meras ati­vi­dades que são, na prá­tica, exer­cidas por mu­lheres, ne­gros ou imi­grantes.

As­sis­timos, cada vez mais, à trans­for­mação do cui­dado e do tra­balho do­més­tico em com­mo­di­ties, o que na Eu­ropa e nos Es­tados Unidos chega a pro­mover a mul­ti­pli­cação de agên­cias de ser­viços, com re­gimes de tra­balho hi­e­rar­qui­zados que mo­bi­lizam di­fe­renças de gê­nero, ra­ciais e ét­nicas. A des­na­tu­ra­li­zação dessas ati­vi­dades exige a re­de­fi­nição de di­versas no­ções com­pre­en­didas sob a ca­te­goria de tra­balho: me­dida, valor, sa­lário, ne­ces­si­dades, con­sumo, tempo de vida ou tempo pro­du­tivo, pú­blico ou pri­vado.

A na­tu­reza do tra­balho mudou ra­di­cal­mente com a des­co­nexão entre o au­mento da pro­du­ti­vi­dade e es­paço-tempo do tra­balho na fá­brica. As eco­no­mias ba­se­adas no tempo de tra­balho, com a au­to­mação, so­frem uma di­mi­nuição do valor pro­du­zido e, ten­den­ci­al­mente, do preço. As em­presas tratam, então, de fazer a lei do valor fun­ci­onar por meio da pro­dução de ra­ri­dade e sin­gu­la­ri­dade, que per­mite uma va­lo­ri­zação a partir da po­sição ocu­pada pela em­presa. Exemplo: tênis Nike. Pensem o quanto de seu valor é ob­tido por um tra­balho re­a­li­zado num es­paço-tempo de­ter­mi­nado e men­su­rável? Mul­ti­plica-se, desse modo, a pro­dução de mer­ca­do­rias com valor prin­cipal não men­su­rável. Nessa re­con­fi­gu­ração está a origem da eco­nomia do co­nhe­ci­mento ou do “ca­pi­ta­lismo cog­ni­tivo”, como chamam al­guns au­tores.

André Gorz foi um dos pri­meiros a mos­trar que o tra­balho cog­ni­tivo supõe a mo­bi­li­zação de todo o tempo so­cial a ser­viço da em­presa, in­clu­sive da­quele tra­balho que pro­vinha do tempo livre, do tra­balho autô­nomo e sobre si. Quando a vida é co­lo­cada a tra­ba­lhar, o mo­delo tay­lo­rista da pres­crição de ta­refas, tempos e mo­vi­mentos, dá lugar ao mo­delo da pres­crição da sub­je­ti­vi­dade, no qual a prin­cipal questão é o con­trole total do tempo e do es­pí­rito dos tra­ba­lha­dores.

Trata-se de uma crise da me­dida. O tra­balho per­ma­nece sendo a única fonte do valor e da mais-valia, mas o tra­balho cog­ni­tivo não se presta à ava­li­ação se­gundo uma me­dida ob­je­tiva, e o tempo de tra­balho efe­tuado no es­paço da em­presa se torna apenas uma fração, muitas vezes a menos im­por­tante, do tempo so­cial efe­tivo de tra­balho. Até aqui, a ex­plo­ração era ex­torsão de um so­bre­tra­balho, ou seja, de tra­balho não re­mu­ne­rado for­ne­cido in­vo­lun­ta­ri­a­mente no con­texto de um con­trato de tra­balho. Mas quando o tra­balho não é me­dido em uni­dades de tempo, como es­ta­be­lecer o con­trato?

Essa ca­rac­te­rís­tica, que marca a vi­rada ne­o­li­beral, já es­tava pre­sente no tra­balho na­tu­ra­li­zado exe­cu­tado pelas mu­lheres. Está em jogo um tra­balho não pago que as pes­soas exe­cutam vo­lun­ta­ri­a­mente, acre­di­tando tra­ba­lhar por sua conta, en­quanto uma parte de seu es­forço é cap­tado pela va­lo­ri­zação do ca­pital. Ati­vi­dades não pagas, que são cor­ri­queiras na vida de cada in­di­víduo, passam a fazer parte da pro­dução; ati­vi­dades que antes ser­viam à re­pro­dução da força de tra­balho, agora são tra­balho, pois tornam as pes­soas ca­pazes de in­te­ragir, co­mu­nicar, aprender, evo­luir, fazer amigos. Por isso, as em­presas va­lo­rizam a mo­bi­li­zação total de seus em­pre­gados – “vestir a ca­misa da em­presa” é es­sen­cial para manter a em­pre­ga­bi­li­dade. Quando a vida em toda a sua ex­tensão ad­quire uma função tão cen­tral no pro­cesso de va­lo­ri­zação, a pro­dução de sub­je­ti­vi­dade torna-se um ter­reno de con­flito cen­tral.

Não é pos­sível deixar de lado a cons­ta­tação de que os termos que fun­daram o pacto do bem-estar so­cial an­co­ravam-se na se­pa­ração entre as es­feras da pro­dução e da re­pro­dução da força de tra­balho: era pre­ciso ga­rantir ao tra­ba­lhador con­di­ções mí­nimas de exis­tência para que fosse pos­sível ex­trair valor de sua pro­dução na fá­brica. Como manter um pacto desse tipo di­ante da nova con­fi­gu­ração do mundo do tra­balho?

Mesmo sem in­cluir as pers­pec­tivas de raça e de gê­nero, Althusser e Fou­cault já ha­viam apon­tado o papel de certas ins­ti­tui­ções da re­pro­dução so­cial para a re­pro­dução das re­la­ções ca­pi­ta­listas, o que en­volve a re­pro­dução dos meios de pro­dução e da re­pro­dução da força de tra­balho pela ação de ins­ti­tui­ções como a fa­mília, a es­cola, a saúde, o casal, os jo­vens etc. Trata-se agora de dar um passo além nessas aná­lises, mas in­cluindo as crí­ticas fe­mi­nistas, do mo­vi­mento negro e do pen­sa­mento pós-co­lo­nial. A re­pro­dução so­cial tornou-se, ao mesmo tempo, um ponto de par­tida para a crí­tica fe­mi­nista do mar­xismo e uma pers­pec­tiva a partir da qual de­sen­volver novas ca­te­go­rias para uma aná­lise das re­la­ções ca­pital/tra­balho.

Notas:

1) An­gela Davis, Mu­lheres. Raça e Classe. Boi­tempo, 2016.

2) Ver o nú­mero da re­vista Vi­ew­point Ma­ga­zine sobre o tema: https://​vie​wpoi​ntma​g.​com/​2015/​11/​02/​issue-​5-​social-​rep​rodu​ctio​n/

3) Ar­tigo no vo­lume acima ou o mais ex­tenso: “Le sym­bo­lique, la pro­duc­tion et la re­pro­duc­tion. Élé­ments pour une nou­velle éco­nomie po­li­tique”, in C. Laval, L. Pal­tri­nieri, F. Taylan (dir.) Marx & Fou­cault. Lec­tures, usages, con­fron­ta­tions, La Dé­cou­verte, Paris 2015.


Ta­tiana Roque é pro­fes­sora da UFRJ, pre­si­dente da ADUFRJ e co­e­di­tora da Re­vista DR: www.​rev​ista​dr.​com.​br

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