Do Blog da Boitempo, 2017
Por Mauro Luis Iasi.
Bloco de carnaval de rua, “Comuna que pariu!”. Rio de Janeiro, 2017.
A expressão acima em francês quer dizer literalmente… “bosta para ele”, usada frequentemente por Rabelais (1494-1553) em suas obras. Como analisa brilhantemente Bakhtin em sua tese sobre o autor (A cultura popular na Idade Média e na Renascimento: o contexto de François Rabelais – São Paulo: Hucitec, 1987), as imagens relativas ao baixo corporal, a zona dos órgãos genitais, é apresentada por Rabelais de forma ambivalente. Isto é: não podem ser entendidas em seu sentido aparentemente grosseiro e vulgar.
Quando consideramos o uso das imagens de jogar excrementos e regar com urina no contexto no qual Rabelais escreveu seus textos, de acordo com a leitura de Bakhtin, percebemos que “as imagens da urina e dos excrementos conservam uma relação substancial com o nascimento, a fecundidade, a renovação, o bem-estar” (p. 128). O autor russo nos dá uma série de exemplos na literatura antiga e medieval que corroboram seu ponto de vista, assim como expõe autores que tentam amenizar as imagens com metáforas inadequadas, como em A. Vesselovski (1848-1918) que prefere usar a expressão “salpicar de lama” ao referir-se a passagem na qual se descreve um camponês jogando merda nos transeuntes.
Aos olhos de Bakhtin, a inadequação se dá não apenas quando se tenta amenizar a força das imagens relacionadas aos excrementos e à urina, mas também quando elas são consideradas simplesmente como grosseiras obscenas e cínicas ao serem usadas por Rabelais. A constante referência a jogar excrementos e regar com urina são parte orgânica de todo o sistema de imagens que o autor se utiliza para trazer para a literatura o mundo da feira, da praça pública, das festas, do carnaval. Somente aos olhos da literatura moderna tais atos assumem uma forma escatológica e obscena (p. 131). Aliás, o significado de “escatológico” como tratado sobre excrementos e relativo ao que pode ocorrer depois do fim do mundo, é significativo como veremos.
A relação dialética entre morte e vida, rebaixar e renascer, humilhar e fertilizar, indica mais que o lado cômico do elemento popular. Nesta passagem, Bakhtin aponta claramente este significado mais amplo uma vez considerando o quadro geral de referencia:
“A fim de ter uma compreensão justa dos gestos e imagens populares carnavalescos, tais como a projeção de excrementos ou a rega com urina, etc., é importante levar em consideração o seguinte fato: todas as imagens verbais e gesticulações desse tipo faziam parte do todo carnavalesco impregnado por uma lógica única. Esse todo é o drama cômico que engloba ao mesmo tempo a morte do mundo antigo e o nascimento do novo” (p. 128).
Em um mundo e uma época de polaridades mecânicas, no qual se separa como polaridades excludentes o negativo e o positivo, a vida e a morte, toda imagem ligada ao baixo corporal é identificada como “grosseria”, perdendo-se seu movimento ambivalente ligado ao ciclo vida-morte-nascimento. O mundo velho que se crê eterno se incomoda muito em se ver como adubo podre e mal cheiroso que fertiliza o futuro que virá.


Em uma sociedade que desenvolveu o curioso comportamento de horror em relação ao corpo, seus fluídos e dejetos como bem analisaram Freud e Foucault, o carnaval é uma expressão deste conteúdo reprimido, ainda que séculos de civilização o tenham soterrado e determinado em muito sua forma atual de expressão. Enquanto a sexualidade, por exemplo, fica em evidência na expressão sintomática, o trato com os dejetos fica mais soterrado nas camadas de repressão que a cultura impõe. No entanto, isto não impede que mesmo estes fósseis pulsionais se manifestem, por exemplo na linguagem popular, como no famoso “vai à merda”. Aqui é expressiva a famosa cena no filme El discreto encanto de la burguesia (1972), dirigido por Luis Buñuel, na qual as pessoas comem no banheiro e fazem suas necessidades fisiológicas na sala de jantar.
Nada mais representativo de nossa sociedade hipócrita que pegar o carnaval e encarcerá-lo em uma avenida fechada com arquibancadas para que o corpo desfile como espetáculo, purificado de sua linguagem questionadora e incômoda. Para os excrementos e a urina… banheiros químicos!
Neste mundo controlado do espetáculo e da mercadoria, os blocos de rua são um sopro de vida. Evidente que muitos já foram domesticados (mercantilizados), mas a vida insiste em fluir com seus nomes picantes, seus temas “grotescos”, sua sátira cortante, como meu querido “Comuna que pariu” que no Rio cortou o silêncio da cidade morta e falida com seu canto colorido de purpurina: “o teu problema é qual? Meu peito, meu cú, meu pau? […] Meu desejo, tua ferida… vai cuidar da tua vida! […] um beijo, um beijo, um beijo pras travesti!”. A chance da Rede Globo fazer uma animaçãozinha, colocando esta letra na telinha enquanto a marca de shampoo sai voando em confete e serpentinas é… nenhuma! Que orgulho deste bloco, porra (outro fluído que representa vida e que só o povo pode dizer)!!!!
O questionamento aos poderosos é outra marca do carnaval vivo. Dizem que um certo usurpador golpista se incomodou com a insistência de um certo tema que vicejava em vários blocos e junto aos cortejos alegres de um povo triste. Um gringo meio atrapalhado dizia para a repórter que gostou muito do carnaval no Brasil, mas não entendia porque todo mundo gritava tanto aquela frase que ele não sabia o que significava: “Fora Temer”!
O país chafurda na merda! Estranhamente brinca o carnaval com insensata alegria. Como diria Rabelais: “bren por luy”. Esterco eficiente de onde renascerá um novo país, assim esperamos. Por enquanto, nos preparamos para o dia em que este território será regado pelo mijo de milhões de foliões. Hoje acumulamos forças… tomando cerveja!
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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Bloco de carnaval de rua, “Comuna que pariu!”. Rio de Janeiro, 2017.
A expressão acima em francês quer dizer literalmente… “bosta para ele”, usada frequentemente por Rabelais (1494-1553) em suas obras. Como analisa brilhantemente Bakhtin em sua tese sobre o autor (A cultura popular na Idade Média e na Renascimento: o contexto de François Rabelais – São Paulo: Hucitec, 1987), as imagens relativas ao baixo corporal, a zona dos órgãos genitais, é apresentada por Rabelais de forma ambivalente. Isto é: não podem ser entendidas em seu sentido aparentemente grosseiro e vulgar.
Quando consideramos o uso das imagens de jogar excrementos e regar com urina no contexto no qual Rabelais escreveu seus textos, de acordo com a leitura de Bakhtin, percebemos que “as imagens da urina e dos excrementos conservam uma relação substancial com o nascimento, a fecundidade, a renovação, o bem-estar” (p. 128). O autor russo nos dá uma série de exemplos na literatura antiga e medieval que corroboram seu ponto de vista, assim como expõe autores que tentam amenizar as imagens com metáforas inadequadas, como em A. Vesselovski (1848-1918) que prefere usar a expressão “salpicar de lama” ao referir-se a passagem na qual se descreve um camponês jogando merda nos transeuntes.
Aos olhos de Bakhtin, a inadequação se dá não apenas quando se tenta amenizar a força das imagens relacionadas aos excrementos e à urina, mas também quando elas são consideradas simplesmente como grosseiras obscenas e cínicas ao serem usadas por Rabelais. A constante referência a jogar excrementos e regar com urina são parte orgânica de todo o sistema de imagens que o autor se utiliza para trazer para a literatura o mundo da feira, da praça pública, das festas, do carnaval. Somente aos olhos da literatura moderna tais atos assumem uma forma escatológica e obscena (p. 131). Aliás, o significado de “escatológico” como tratado sobre excrementos e relativo ao que pode ocorrer depois do fim do mundo, é significativo como veremos.
A relação dialética entre morte e vida, rebaixar e renascer, humilhar e fertilizar, indica mais que o lado cômico do elemento popular. Nesta passagem, Bakhtin aponta claramente este significado mais amplo uma vez considerando o quadro geral de referencia:
“A fim de ter uma compreensão justa dos gestos e imagens populares carnavalescos, tais como a projeção de excrementos ou a rega com urina, etc., é importante levar em consideração o seguinte fato: todas as imagens verbais e gesticulações desse tipo faziam parte do todo carnavalesco impregnado por uma lógica única. Esse todo é o drama cômico que engloba ao mesmo tempo a morte do mundo antigo e o nascimento do novo” (p. 128).
Em um mundo e uma época de polaridades mecânicas, no qual se separa como polaridades excludentes o negativo e o positivo, a vida e a morte, toda imagem ligada ao baixo corporal é identificada como “grosseria”, perdendo-se seu movimento ambivalente ligado ao ciclo vida-morte-nascimento. O mundo velho que se crê eterno se incomoda muito em se ver como adubo podre e mal cheiroso que fertiliza o futuro que virá.


Em uma sociedade que desenvolveu o curioso comportamento de horror em relação ao corpo, seus fluídos e dejetos como bem analisaram Freud e Foucault, o carnaval é uma expressão deste conteúdo reprimido, ainda que séculos de civilização o tenham soterrado e determinado em muito sua forma atual de expressão. Enquanto a sexualidade, por exemplo, fica em evidência na expressão sintomática, o trato com os dejetos fica mais soterrado nas camadas de repressão que a cultura impõe. No entanto, isto não impede que mesmo estes fósseis pulsionais se manifestem, por exemplo na linguagem popular, como no famoso “vai à merda”. Aqui é expressiva a famosa cena no filme El discreto encanto de la burguesia (1972), dirigido por Luis Buñuel, na qual as pessoas comem no banheiro e fazem suas necessidades fisiológicas na sala de jantar.
Nada mais representativo de nossa sociedade hipócrita que pegar o carnaval e encarcerá-lo em uma avenida fechada com arquibancadas para que o corpo desfile como espetáculo, purificado de sua linguagem questionadora e incômoda. Para os excrementos e a urina… banheiros químicos!
Neste mundo controlado do espetáculo e da mercadoria, os blocos de rua são um sopro de vida. Evidente que muitos já foram domesticados (mercantilizados), mas a vida insiste em fluir com seus nomes picantes, seus temas “grotescos”, sua sátira cortante, como meu querido “Comuna que pariu” que no Rio cortou o silêncio da cidade morta e falida com seu canto colorido de purpurina: “o teu problema é qual? Meu peito, meu cú, meu pau? […] Meu desejo, tua ferida… vai cuidar da tua vida! […] um beijo, um beijo, um beijo pras travesti!”. A chance da Rede Globo fazer uma animaçãozinha, colocando esta letra na telinha enquanto a marca de shampoo sai voando em confete e serpentinas é… nenhuma! Que orgulho deste bloco, porra (outro fluído que representa vida e que só o povo pode dizer)!!!!
O questionamento aos poderosos é outra marca do carnaval vivo. Dizem que um certo usurpador golpista se incomodou com a insistência de um certo tema que vicejava em vários blocos e junto aos cortejos alegres de um povo triste. Um gringo meio atrapalhado dizia para a repórter que gostou muito do carnaval no Brasil, mas não entendia porque todo mundo gritava tanto aquela frase que ele não sabia o que significava: “Fora Temer”!
O país chafurda na merda! Estranhamente brinca o carnaval com insensata alegria. Como diria Rabelais: “bren por luy”. Esterco eficiente de onde renascerá um novo país, assim esperamos. Por enquanto, nos preparamos para o dia em que este território será regado pelo mijo de milhões de foliões. Hoje acumulamos forças… tomando cerveja!
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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