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O ensino médio reformado pelos astros do cafundó

Em certa universidade brasileira, um professor com doutorado no estrangeiro usava algumas vezes, às vésperas da eleição de 2014, o adjetivo “desenformados” para se referir a seus colegas que declaravam voto em Dilma Rousseff. Sinal dos tempos alguém, sendo semialfabetizado no idioma pátrio, obter doutorado em outra língua; mas o referido intelectual não deixava de ter sua razão, ainda que pela metade. 


Da Revista Espaço Acadêmico educação, ensino médio, política, 28 de setembro, 2016
Por ELOÉSIO PAULO*


Talvez por não conhecer que fontes privilegiadas eram as dele – certamente não seriam Veja eIstoé –, seus colegas, de fato, nem imaginavam como Dilma era incapaz. Incapaz, entre outras coisas, de engolir Eduardo Cunha sem espernear e de perceber a quadrilha que agia nos governos de Lula, vinda de muito antes, e que continuou, a partir de 2011, agindo a todo vapor. Em compensação, tornou-se amplamente público e notório, para outro tipo de desinformado, aquilo de que Aécio Neves era e é capaz, e tais capacidades continuam valendo como desculpa para alguém ter votado em re-Dilma.

Ninguém minimamente lúcido desejaria a permanência da presidente no cargo, a não ser pelo detalhe de ela ter sido dele apeada por meio de um golpe parlamentar, visivelmente orquestrado desde a promulgação do resultado do pleito de 2014. A rigor, uma pessoa que sempre votou na esquerda poderia hoje, no máximo, desejar que tivéssemos na próxima década alguns governos civilizados de centro-direita, tamanha a desmoralização, parte merecida e parte fabricada, que tem sofrido a esquerda eleitoralmente viável. Veja-se o caso de Erundina, que foi o único bom prefeito paulistano depois de Mário Covas e só não continuou vice de Haddad porque se recusou a subir no mesmo palanque de Maluf. Também se registre que Dilma não foi mais incapaz, administrativamente, do que Collor ou Sarney e que o verdadeiro (porém, falso) sucesso de Lula começou com a caída em desgraça de seus homens fortes Dirceu e Palocci, este um mero imitador de Pedro Malan. Fernando Henrique, por sua vez, tinha seguido à risca a cartilha do FMI para enterrar o Brasil no cartão de crédito, algo muito semelhante ao que faria Dilma, porém beneficiando apenas uma classe, a dos rentistas.

Tudo isso vem a propósito de o signatário deste artigo, primeiramente, não engrossar o coro de “Fora Temer” por não acreditar que, escolhido pelo atual Congresso, poderia nos sair um governo menos pior. Talvez seja uma introdução meio longa para tratar do projeto de reforma do ensino médio, mas valha como ressalva de que não se trata de um protesto tardio contra o golpe. Para muitos, de ambos os lados, é artigo de fé se houve ou não houve golpe; pressupostos deste texto são que houve, sim, e que, independentemente da posição contra ou a favor, seria obrigatório reconhecer a superioridade administrativa, técnica ou política do governo atual, caso houvesse alguma. A melhora que o país teve até agora sob Temer ocorreu porque os sabotadores da economia, também conhecidos como “investidores”, abandonaram suas posições pós-eleitorais e passaram, tímida e provisoriamente, a colaboracionistas, na espera de que o ex-interino cumpra os compromissos gestacionais do golpe. Todas as iniciativas do governo, até agora, são pífias e ainda parcialmente canceladas por recuos a cada reclamação mais grossa, especialmente se vinda dos parceiros golpistas.

O ministro Mendonça Filho, consta que ligado a um grande grupo educacional privado, começou sua gestão recebendo no gabinete ministerial, a propósito do projeto “Escola sem Partido”, o pornógrafo e dublê de pedagogo Alexandre Frota. Em três meses no Ministério, sua grande realização foi chamar de volta duas damas-de-ferro do saudoso Paulo Renato Souza. O MEC esteve paralisado por semanas a fio, talvez por efeito de alguma desconhecida peçonha. Agora, parecendo retornar do letargo, Mendoncinha vai aos holofotes anunciar uma ambiciosa reforma do ensino médio.

Admitamos, de saída, que o ensino médio no Brasil é uma porcaria, com as exceções de praxe. Segundo, é verdade que os adolescentes só frequentam a escola por obediência aos pais ou por pragmatismo, isso no caso daqueles que têm família e/ou são capazes de observar a situação, no mercado de trabalho, de que não tem nem um diploma de segundo grau.

Agora, por que baixar a reforma por medida provisória? Possivelmente, para aproveitar a maioria parlamentar que já dá sinais de desidratação. Não são conhecidos os gênios que, talvez tomando café no Starbucks num shopping de Brasília, formularam a espantosa reforma que vai fazer os jovens voltarem a se interessar pela escola.

Ensino em tempo integral é, em princípio, uma boa ideia. Mas rapazes e moças não se sentirão num presídio, se obrigados a assistir a mais aulas ou a participar de atividades mal planejadas ou nem mesmo planejadas? Onde está o enorme contingente de professores preparados para conduzir esse gigantesco contraturno, se eles faltam até para as tarefas já existentes? Haja notório saber disposto a ganhar mal!

Ora, os jovens não se interessam pela escola porque ela é desinteressante, e ela é desinteressante, antes de mais nada, porque a carreira de professor é muitas vezes um inferno dantesco feito de salários aviltantes, jornadas de trabalho estafantes e desprestígio simbólico. Qualquer fuçador de geringonça eletrônica a serviço do funk na Baixada Fluminense tem mais prestígio social que um professor. Pois bem, o que um governo antipopular em sua origem vai fazer para valorizar o professor? Nada ou, pelo contrário, vai tornar a profissão ainda menos atraente aumentando a jornada de trabalho e encompridando o tempo para aposentadoria.

A escola é desinteressante porque não se preparou e não se prepara contra a concorrência do trabalho infantil não-remunerado que são as horas da moçada diante da televisão e, mais recentemente, do computador e do celular. É claro que, teoricamente, essas tecnologias poderiam ser muito úteis ao aprendizado, mas também é evidente que são usadas apenas como distração, evasão, alienação. Qualquer semelhança com drogas psicoativas não é mera coincidência, e já ouvimos falar sobre jovens viciados em internet. Que varinha mágica vai mudar isso?

Tais silvícolas eletrônicos, na esperança dos novos sábios planaltinos, teriam a capacidade de definir seu “percurso formativo”, mesmo não sabendo fazer as quatro operações nem sendo capazes de ler uma crônica de jornal. Claro, a metamorfose seria garantida pelos efeitos de uma base curricular que ainda nem existe… Também polianesca é a expectativa de que o governo federal vá “disponibilizar” os recursos necessários para um aumento de – pasmemos todos juntos – 75% de carga horária. O mesmo governo que já começou a cortar a torto e a direito as verbas da Educação que, difícil negar, Lula e Dilma andaram jogando pela janela do populismo ao criar universidades inviáveis – pelo menos até que Dom Sebastião emerja do pré-sal.

A Globonews, sintomaticamente, colocou Miriam Leitão para comentar a “proposta” de reforma, na verdade imposta. Sim, a jornalista entende de economia, e para os donos do Brasil é disso que se trata: números. Mas nem com números eles conseguem tratar direito, porque ninguém explica como as escolas particulares farão frente ao aumento enorme de despesa representado pelo contraturno. Vão contratar mais professores, aumentando muito o valor das mensalidades (touché!), ou achatarão ainda mais os salários (em garde!)? Ah, mas elas poderão abrir inúmeros cursinhos, já que a maioria dos adolescentes, à vista do vestibular, este voltando com força total, descobrirão que aquele negócio de escolha autônoma do “percurso formativo” era uma belíssima lorota.

Mendoncinha quer, por exemplo (Queria. Já voltou atrás), tirar a Sociologia do currículo. Talvez não fizesse muita falta, porque é mesmo, em geral, mal ensinada, e boas aulas de História seriam muito mais importantes. Mas tal ideia já não reflete a teoria educacional de Magno Malta e Alexandre Frota, esse mostrengo ao mesmo tempo neopentecostal e nutrido por sexo industrializado?

Enfim, a proposta é idiota porque vem de um Ministério incapaz e fisiológico, capitaneado por biografias como as de Romero Jucá e Geddel Vieira Lima, esses astros do cafundó. Mas atenção: o provincianismo do PSDB paulista, ao contrário do que parece, tem apenas o sinal trocado. Subserviência ao grande capital também é espírito de cafundó, se não for coisa pior.

Seria até possível considerar a coisa de modo menos pessimista, mas a maneira como surge o projeto não o permite. Ele nasceu morto, e não porque seja ruim, e é, mas porque resulta de uma enorme falta do que dizer. Esperemos que Tiririca faça seu primeiro discurso no parlamento e nos convença de que Temer pretende melhorar a educação brasileira agarrando-a pela cintura, ou seja, agindo bem pior do que Lula e Dilma, que pretendiam começar pelo topo. Que o diga o defenestrado Cristovam Buarque, único ministro da Educação nas últimas décadas a entender de seu mister, e para quem só poderemos ter um bom ensino médio quando tivermos um bom ensino fundamental, assim como nossa universidade só será competitiva quando nela estiver uma geração que não tenha sido deformada, desde a infância, pela estupidez midiática congenial à redemocratização atrofiada de que fomos capazes.


* ELOÉSIO PAULO é professor da Universidade Federal de Alfenas (MG) e autor dos livros Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 e Os 10 pecados de Paulo Coelho.

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