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Martírio: um filme para indignar Brasília

Divulgação/Ernesto de Carvalho
Documentário de Vincent Carelli estreia no Festival de Brasília


Do IHU, 23 de Setembro, 2016
Por Felipe Milanez, publicada por CartaCapital

Documentário de Vincent Carelli estreia no Festival de Brasília


"Agora com essa tragédia com os Guarani Kaiowa, é preciso fazer algo, e o cinema é uma ferramenta poderosa".

Há um momento no filme Martírio (2016, 160 min, dir. Vincent Carelli), e peço licença para não fazer o sacrilégio de estragar alguma surpresa, mas está na foto que ilustra esse artigo, quando um indígena Kaiowa diz: "O que tá pegando a gente é ocapitalismo".

Desde que assisti Martírio, em um encontro com o diretor Vincent Carelli emOlinda (PE), poucas semanas atrás, essa frase, dita nesse contexto, por essa voz no belo ritmo da língua guarani, não sai da minha cabeça. O capitalismo está pegando os indígenas.

Tal como um monstro, em uma analogia que faz Ailton Krenak quando "o mercado acorda de mau humor e quer comer uma montanha", os Kaiowa e Guarani possuem uma precisa análise da situação em que se encontram e procuram traçar estratégias de autonomia e liberdade. Como enfrentar o capitalismo que também é responsável pela destruição cultural, além da física e outras dimensões que afligem os indígenas?

Nesta quinta-feira 22, o documentário Martírio será exibido pela primeira vez noFestival de Cinema de Brasília, as 21 horas (veja informações abaixo).

Martírio é o segundo filme da trilogia ainda em andamento de Vincent Carelli, indigenista, documentarista, criador do projeto Vídeo nas Aldeias. O primeiro filme foi Corumbiara, o segundo, Martírio, e o final será Adeus, Capitão. Essa trilogia, diferentemente dos filmes do Vídeo nas Aldeias, é baseada no longo trabalho investigativo de Carelli, filmes produzidos ao longo de três décadas, onde a visão dele da luta indígena é apresentada junto de profundas mudanças no país.

A trilogia de Vincent é ao mesmo tempo material histórico do registro de um tempo, de uma transição da ditadura para a democracia, em um processo aonde os povos indígenas permaneceram, constantemente, excluídos das garantias aos direitos fundamentais e do acesso aos aparelhos do Estado, sempre mantidos de forma privilegiada nas mãos de poucos e brancos.

Em 2013, escrevi um texto nessa coluna apoiando o financiamento coletivo porCarelli para a realização de Martírio, que conseguiu superar a meta e arrecadar oitenta e cinco mil reais. Os recursos foram insuficientes para todo o filme, mas fundamentais para avançar na sua produção.

Naquele momento, entrevistei Carelli e ele me disse: “Agora com essa tragédia com os Guarani Kaiowa, é preciso fazer algo, e o cinema é uma ferramenta poderosa, aprendi isso com Corumbiara. Não é por gosto que tenho tratado do tema da violência contra os índios, é por imposição dos acontecimentos”.

Eu já imaginava, e assim sugeri no título, que Martírio era "um filme que o Brasilprecisa ver". Agora, pronto e finalizado, o Brasil precisa ver.

Carelli diz que fez o filme "por imposição", e assim concluiu uma obra extraordinária. Martírio, bastante longo, é denso e profundo, ao mesmo tempo conduzido com uma contraditória suavidade que nos permite acompanhar, indignar, mas sempre com um grande respeito aos personagens e às reflexões apresentadas.

É um documentário que traduz uma profunda indignação que caracteriza a vida deVincent Carelli: essa imposição de gritar, de se indignar, se insurgir, uma revolta contida dentro do peito de Vincent desde a primeira vez em que ele esteve entre osKaiowa e Guarani nos anos 1980.

Martírio é um filme-evento. Vincent nos conduz para o coração das trevas doagronegócio, e nos mostra a luz e a beleza que move os Kaiowa e Guarani a lutarem para existir. Essa luz é expressa pelas reflexões, cantos, a religiosidade sempre presente e marcante, e uma epistemologia extremamente sofisticada, uma forma de ver, analisar e pensar o mundo que é única.

Martírio traz uma profundidade inédita na cinematografia sobre a luta Guarani e Kaiowa. Um filme filmado de dentro, junto, e pelos indígenas também. E traz o que se pode chamar de o “outro lado” do genocídio através dos vômitos racistas no Congresso Nacional, cenas deploráveis de um leilão da morte, a fala mansa dos matadores.


Cena do filme Martírio (Foto: reprodução)

Afinal, o genocídio é um ato em que um grupo tenta exterminar o “outro”, acabar com a existência de um povo. Nesse caso, o lado genocida, materializado pelas balas dos pistoleiros e dos grupos de extermínio e empresas de segurança, é composto por fazendeiros, ruralistas, e pela omissão e ação do Estado. A culpa histórica do Estado pelos eventos que levam ao martírio guarani é apresentada com precisão histórica, e farta documentação.

Martírio acompanha a trajetória do drama e da violência colonial do capitalismo que atinge os Guarani, desde sua perspectiva histórica nos séculos anteriores, com aGuerra do Paraguai, até o violentíssimo avanço das últimas décadas, marcadas pela crueldade do racismo moderno e a desumanização científica e mediática produzida contra os indígenas nos últimos anos.

A “guerra justa” que era aplicada para a escravização antes, agora é justificada pela teologia do progresso, do desenvolvimento, e em louvor à pata do boi e ao sacro grão da soja, a materialização da despossessão produzida pelo capitalismo e pelo colonialismo.

O filme percorre o caminho tortuoso entre o Mato Grosso do Sul, na realidade da fronteira, ao centro do poder, em Brasília — e poderia passar também pelos grandes portos consumidores de soja na Holanda, na China, nos Estados Unidos, ou do biodiesel que abastece os postos de gasolina e o bolso de ricas famílias em São Paulo.

Através da câmera de Carelli, que trabalha em conjunto com Ernesto de Carvalho, acompanhamos o pensamento Guarani e Kaiowa, a sofisticada compreensão de mundo que desenvolvem, e o deplorável discurso da intolerância que justifica a acumulação de capital e de terra sobre o sangue indígena. A hipocrisia da falsa democracia racial é desnudada pelas contradições da formação do Estado-nação que é um verdadeiro “Estado de Exceção”.

Carelli é um ícone da luta indígena, e nos mostra a possibilidade de uma pessoa homem e branca, em um posicionamento social do colonizador, de inverter a trajetória construída pela sociedade para mudar de lado, engajar-se em um contra-movimento descolonial para lutar pela autonomia e liberdade dos povos indígenas, a batalhar por justiça, e a se indignar e provocar que outros se indignem frente aos absurdos, a covardia e a violência cruel.

Pessoalmente, sou um grande admirador de Vincent Carelli, e é por causa de filmes como Martírio que tantos outros e outras, assim como eu, o tratam como uma pessoa absolutamente essencial para se pensar o Brasil que vivemos, para se indignar e lutar.

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