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O trabalho no centro das lutas que se avizinham

O direito ao trabalho e ao trabalho com direitos, como fator essencial de distribuição de riqueza, não perderá a sua centralidade nas lutas que se avizinham.


Esquerda.Net, 10 de Agosto, 2016
Por Ricardo Vicente

Uma legislatura de austeridade radical, dirigida por Passos Coelho e Paulo Portas sob o escudo protetor e guião da CE, FMI e BCE (Troika) mostra-nos bem o que seria o futuro nas mãos desta gente. Desemprego e precariedade como regra social, pobreza e miséria a varrer as ruas do país, destruição de serviços públicos numa sociedade exausta e brutalmente violentada, com a imigração a níveis inéditos. Apesar dos novos tempos o país ainda sangra.

Desde a chegada da troika, em 2011, implementou-se um gigantesco processo de transferência de valor do trabalho para o capital. Durante esse período, maioritariamente marcado pela governação PSD-CDS vivemos uma enorme desaceleração da economia, com destruição massiva de empregos - 400 mil até 2015 – e crescimento acelerado da precariedade e do desemprego. Entre 2010 e 2014 o número de trabalhadores mediados por contratos de trabalho coletivos baixou de 1,5 milhões para 200 mil e atualmente mais de metade da população ativa nacional são trabalhadores precários e desempregados. Aos 22% de desempregados reais, em 2015, somam-se mais de 1 milhão de contratados a prazo e centenas de milhar de trabalhadores a recibos verdes, mediados por empresas de trabalho temporário, com estágios profissionais e outras formas informais de trabalho, um enorme contingente de mão-de-obra barata e desesperada que satisfaz o patronato.

O salário médio representava 930€ mensais em 2010, mas em 2015, contabilizando apenas os contratos formalizados a partir de 2013, o valor era de 581€, segundo o Fundo de Compensação Salarial. No assalto às famílias, foram ainda aplicados cortes de 600 milhões de euros nas reformas, aumentou-se o IRS, reduziram-se os subsídios de natal para metade e ainda se aumentou a jornada de trabalho gratuitamente, através da eliminação de feriados, a implementação do banco de horas e a redução do valor em horas extras e fins de semana de trabalho. Facilitou-se os despedimentos e reduziram-se as indemnizações por despedimento.

Quase um terço dos beneficiários do subsídio de desemprego perderam este apoio entre 2012 e 2015 e o valor médio do subsídio de desemprego baixou cerca de 10% entre 2012 e 2014. Num país com mais de 2 milhões de pobres (20% da população total) cortaram-se os apoios a quem mais precisa deles, de 2011 para 2015 reduziram o valor do RSI e o número de beneficiários a dois terços do valor inicial.

A austeridade empurrou Portugal para o Top 5 dos países que perderam mais população do mundo, face à sua população total. Mais de metade dos atuais imigrantes têm idade compreendida entre 15 e 34 anos. Imigraram cerca de 100 mil pessoas por ano durante a legislatura anterior, um número superior ao registado na década de 60, em plena ditadura e guerra colonial.

O mundo do trabalho mudou muito nos últimos anos, mas este caminho iniciou-se em governos anteriores. Bagão Félix, num governo PSD, e Vieira da Silva, num governo PS, ambos dirigiram processos de reformulação do código do trabalho. O caminho que nos conduziu aos dias de hoje foi guiado pela ideia de que trabalhadores e patrões estão em pé de igualdade. Destruiu-se gradualmente os mecanismos de proteção ao elo mais fraco, os trabalhadores. Esta transformação ocorreu com o suporte de uma argumentação que afirmava que não só é necessário flexibilizar as relações de trabalho para criar emprego como, também, esse é o caminho para a modernidade. A atualidade é prova de que esta ideia está errada, pois ao longo deste percurso a flexibilização do trabalho, isto é, a implementação da precariedade, teve como consequência um enorme crescimento do desemprego e hoje todos os trabalhadores precários sentem que a precariedade das suas vidas não corresponde a qualquer ideia de modernidade. Os precários não escolheram ser precários e não ambicionam manter essa condição para o futuro.

Com o estalar da crise cresceu a chantagem sobre quem procura um trabalho, sobre quem busca qualquer fonte de rendimento. Em resposta estão a crescer novas formas de precariedade e mais intensas, numa onda de informalidade organizada, promovida por diversos empregadores (hotelaria, restauração, agricultura, turismo, etc.) e que acolhe, perigosamente, algum consentimento entre trabalhadores precários que sentem as suas vidas ao nível da sobrevivência diária, abdicando da sua carreira contributiva e da inerente proteção social. Os custos futuros desta mudança são altíssimos. Quanto maior o nível de precariedade, na sua intensidade e número de trabalhadores afetados, maior é o risco de colapso da Segurança Social pública. Não faltam seguradoras ansiosas pela possibilidade de florescimento do seu negócio.

Num país devastado pela pobreza e pelo desemprego e permanentemente sangrado pela dívida, nunca nas últimas décadas foi tão importante defender o trabalho como direito e os salários como forma de distribuição de riqueza. Sempre foi ao nível dos salários que se conseguiram as maiores e mais eficientes distribuições de rendimentos, não desprezando a importância das formas de salário indireto, em especial ao nível dos serviços públicos (saúde, transportes, etc.). Quanto mais nos afastamos do momento de pagamento dos salários, mais dificilmente os rendimentos do trabalho chegam aos trabalhadores, por isso o trabalho e os salários diretos e indiretos estão no centro da política austeritária da Europa, pois é também aqui que se consegue a maior transferência de valor do trabalho para o capital. A austeridade promove o caminho da precariedade e do desemprego massivos e empurra a totalidade dos trabalhadores para o salário mínimo.

O atual quadro político, com o acordo parlamentar à esquerda, possibilitou a subida do salário mínimo de 505 para 530€ e prevê-se uma nova subida para o próximo ano, possibilitou ainda uma reposição do valor das pensões e algum avanço com medidas de apoio aos mais carenciados, assim como o assegurar de algumas formas de salário indireto, através do bloqueamento das privatizações que estavam em curso. O acordo tem o enorme mérito de ter travado o processo de empobrecimento, mas no que à distribuição de rendimentos diz respeito, ainda estamos ao nível dos cuidados paliativos. A austeridade e a engenharia que a implementou utilizaram uma espécie de locomotiva que é difícil de arrancar, que demora tempo a atingir a sua velocidade cruzeiro, que é destrutiva na sua passagem e que estava anunciadamente programada para descarrilar, provocando destruições em série caso alguém se atrevesse a travar a máquina. Os esforços à direita para o descarrilamento falharam, a máquina parou mas está lá, resta saber se vai reverter ou retomar o rumo da destruição. Isso levará o seu tempo.

À esquerda serão necessárias duas coisas: 1. aplicar uma força sobre esta locomotiva que seja suficiente para vencer a inércia e o atrito do caminho para a reposição de direitos - só a mobilização popular e a construção de movimento social em defesa da democracia e da soberania dos países gerará potência suficiente para iniciar esse caminho, que exige a libertação do garrote da dívida; 2. superar a prova de obstáculos, armadilhas e sabotagem que os pró-austeridade estão a preparar a nível nacional e europeu.

À direita serão necessários três ingredientes: 1. Em Portugal, trocar de maquinistas, i.e. destruir a geringonça – há várias formas de o fazer; 2. Recuperar a força capaz acionar e deslocar a locomotiva rumo à austeridade – a chantagem da dívida será a sua mais forte ferramenta; 3. Vencer a ação da oposição e os movimentos sociais que recusam a austeridade.

Teremos todos de ser parte desse amplo movimento social antiausteritário, pró-soberania, pró-democracia, que constrói solidariedade internacional e que não só impede o avanço da locomotiva austeritária como, também, inverte o rumo da política dos últimos anos, em Portugal e na Europa. Preparemo-nos, juntemos forças, que isto não se faz com sectarismos nem nacionalismos bacocos. O direito ao trabalho e ao trabalho com direitos, como fator essencial de distribuição de riqueza, não perderá a sua centralidade nas lutas que se avizinham.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Vicente
Engenheiro agrónomo

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