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Grampos ilegais: o avanço do Estado policial

Sérgio Moro sabe que pode ser alvo de questionamento do CNJ por causa de seu ataque contra as instituições e leis que garantem a ordem democrática no país.

Da Carta Maior, 20 de março, 2016
Por Tatiana Carlotti


A interceptação das conversas telefônicas entre o ex-presidente Lula e a presidenta Dilma Rousseff na última quarta-feira (16.03), bombardeada nos jornais do país, escancara os abusos cometidos pela Operação Lava Jato. Nos últimos dias, entidades jurídicas, advogados e juristas vieram a público denunciar não apenas o vazamento das conversas, mas a gravidade da hipótese de a Presidência da República ter sido grampeada.

A Advocacia Geral da União (AGU) e o Ministério da Justiça já anunciaram que farão uma análise nos áudios das ligações para descobrir quem foi grampeado: a presidenta Dilma Rousseff ou o segurança do ex-presidente Lula, Valmir Moraes da Silva. A conversa aconteceu no dia 4 de março, quando da condução coercitiva do ex-presidente pela Polícia Federal (PF) ao aeroporto de Congonhas.

O juiz Sérgio Moro responsável pela autorização da intercepção telefônica e pelo seu vazamento argumenta que o “interceptado era o investigado e não a autoridade, sendo a comunicação interceptada fortuitamente”. Durante a gravação nota-se que o chamado partiu da Presidência e é possível ouvir a voz de uma funcionária da presidenta, antes do segurança do ex-presidente Lula atender o telefone. Isso indicaria que os dois telefones estavam grampeados.

“Existem várias circunstâncias que sugerem que tenha sido feita uma interceptação ilegal e nós vamos atrás delas. Vamos com muito rigor atrás delas e vamos tirar as consequências disso, doa a quem doer”, garantiu o ministro da Justiça, Eugênio Aragão.

Reportagem de Afonso Benites, do El País (18.03.2016), ouviu seis policiais federais com experiência em programas de escutas telefônicas e um técnico em telefonia. Cinco policiais e o técnico sustentam, aponta a reportagem, que se os grampos não estivessem em um telefone na Presidência, não seria possível ouvir a voz da funcionária antes do início da chamada.

“É crime, sim!”

“Quebrar segredo de Justiça com objetivos não autorizados em lei constitui-se um crime cuja pena é de dois a quatro anos de prisão”, afirmou o jurista e professor da USP, Sérgio Salomão Shecaira, durante o Ato pela Legalidade e pela Democracia, realizado na última quinta-feira (17.03), na Faculdade de Direito da USP.

Ele citou a lei que rege as interceptações telefônicas: “Constitui-se crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, informática ou telemática, ou quebrar segredo de justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”.

Sobre a presença de grampos na Presidência, foi categórico: “Sem dúvida nenhuma, ele cometeu um crime. É um crime sim. E este fato tem que ser levado às barras dos tribunais”.

Vários juristas e profissionais do Direito se manifestaram. Lenio Streck, professor de Direito Penal, afirmou ao Conjur, que “a vingar a tese de Moro de que não há mais sigilo [em conversas envolvendo autoridades, desde que elas não tenham sido diretamente grampeadas], todos os segredos da República poderiam ser divulgados”.

“Uma cadeia de contatos que exporiam todo tipo de assunto que o Presidente da República falasse com pessoas sem foro (...) Quem examinar esse fato à luz da democracia, dirá: Moro foi longe demais”, complementa. (Conjur, 16.03.2016)

Nota do Instituto Lula

A presidenta Dilma Rousseff também reagiu: “Presidente do Brasil ou de qualquer país democrático do mundo tem o que se chama de garantias constitucionais. Não pode ser grampeado, a não ser com autorização expressa da Suprema Corte. Em qualquer lugar do mundo qualquer um que grampear um presidente vai preso”.

"Grampeia o presidente dos Estados Unidos para ver o que acontece. É por isso que vou tomar todas as providências cabíveis neste caso”, complementou (PortalVermelho, 18.03.2016). 

Em nota enviada ao Jornal Nacional, neste sábado, o Instituto Lula apontou que a “violação de conversas do ex-presidente Lula, que nada têm a ver com as investigações da Petrobras, é uma afronta ao Artigo 5o. Constituição”.

“Lula não disse nada ilegal ou imoral. A divulgação desses grampos, fomentando intrigas e preconceitos, serve apenas para tumultuar os processos judiciais e o ambiente político”, afirma o texto (leia a íntegra da nota).

Vazamentos

Em viagem ao exterior, o procurador-geral da República Rodrigo Janot foi alertado naquele dia, 04.03, sobre as escutas. Ele orientou que fosse seguido o “padrão adotado nos procedimentos” da Lava Jato. Janot sustenta que desconhecia o conteúdo das conversas e que não sabe se “houve interceptação da Presidência da República”.

Na sua avaliação, a interceptação "pode ter sido correta”. O incorreto, afirmou, “seria se a escuta tivesse sido determinada pelo juiz de primeiro grau, e não pelo Supremo Tribunal Federal, em linhas de telefone de uso da Presidência da República. Isso é incorreto. Só o Supremo pode fazê-lo". (G1, 18.03.2016)

Vale destacar que foram duas conversas vazadas à imprensa. Moro sustenta que havia ordenado a suspensão às 11h44 da manhã. A PF diz ter tomado ciência da determinação às 12h43. As operadoras telefônicas teriam sido comunicadas entre 12h17 e 12h18h. (OESP, 18.03.2016) Mesmo assim, a gravação, realizada após esse horário (13h32), foi anexada aos autos e vazada à imprensa.

Pelos trâmites legais, um juiz expede a ordem para as operadoras de telefonia gravarem as chamadas, posteriormente analisadas pelos policiais que encaminham seu conteúdo ao juiz. É o juiz quem decide quando essas informações se tornarão públicas. No caso, o levantamento do sigilo e o acesso público foi determinado às 16h21.

Como aponta Luis Nassif, no site GGN (17.03.2016), pelas explicações, “conclui-se que policiais federais agiram ilegalmente (porque sem autorização do juiz) e Moro agiu ilegalmente (porque difundiu uma gravação ilegal)”. E mais: a versão de que a empresa de telefonia fez algumas interceptações ´até o cumprimento da decisão judicial´ não resiste a um teste de lógica. Se foi após a suspensão da escuta, o grampo tinha que ser destruído. Em vez disso, foi divulgado”. (Leiam a íntegra)

Grampos atingem até não investigados

O fato é que, ao longo da semana, a Operação Lava Jato municiou as empresas de comunicação do país com essas gravações telefônicas. A conversa entre a ex-primeira-dama Marisa Letícia e seu filho, Fábio Luís Lula da Silva, por exemplo, escancara o objetivo de constranger publicamente pessoas ligadas ao ex-presidente e atiçar o ódio da população.

O conteúdo vazado não traz nenhuma informação sobre a Lava Jato (Exame, 17.03.2016), trata-se de apenas um desabafo de dona Marisa, em uma conversa particular.

Até mesmo não investigados pela Lava Jato estão sendo grampeados e o conteúdo de suas conversas publicados nos jornais. Na última sexta-feira (19.03), os jornais exibiram uma conversa sobre a nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil, de 10 de março, entre o presidente do PT, Rui Falcão e o chefe de gabinete da presidenta, o ministro Jaques Wagner (Agência Brasil, 18.03.2016).

“É imprescindível afirmar que a gravação foi baseada em um grampo ilegal, uma vez que nem o presidente do PT e nem eu somos alvos de investigação”, denuncia Wagner. Ele garante que irá “solicitar investigação sobre a existência de grampos em telefones da Presidência da República, bem como sobre a autorização de divulgação de diálogos privados gravados de forma ilegal”.

“Um claro desrespeito à Constituição, às liberdades individuais e ao Estado de Direito Democrático", complementa.

25 advogados grampeados

Outra prova dos abusos da Lava Jato foi o grampo do celular do advogado do ex-presidente Lula, Roberto Teixeira. E mais: o seu escritório também foi grampeado, comprometendo o sigilo de 300 clientes de 25 advogados que trabalham no escritório, além de funcionários e estagiários (Conjur, 17.03.2016).

O MPF alega que o grampo no escritório foi um engano, acreditou-se que se tratava da empresa Lils Palestras, Eventos e Publicações, do ex-presidente Lula. Os advogados são categóricos: “durante os quase 30 dias da interceptação, foram ouvidas diversas gravações que já começavam com a identificação do escritório de advocacia”.

O celular de Roberto Teixeira também foi incluído nas interceptações autorizadas pelo juiz Moro. Isso viola o artigo 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994) que garante aos advogados “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

Em nota, Roberto Teixeira e seu sócio, Cristiano Zanin Martins denunciam: isso configura “um grave atentado às garantias constitucionais da inviolabilidade das comunicações telefônicas e da ampla defesa”.

Para justificar a interceptação telefônica de Teixeira, o juiz Moro argumentou que o escritório havia assessorado Jonas Suassuna e Fernando Bittar na aquisição do sítio de Atibaia. Os advogados apontam que essa justificativa é a maior prova de que “Roberto Teixeira foi interceptado por exercer atos privativos da advocacia — o assessoramento jurídico de clientes na aquisição de propriedade imobiliária — e não pela suspeita da prática de qualquer crime”.

Violação do direito de defesa

Eles também afirmam que “a intenção do juiz e dos membros do Ministério Púbico foi a de monitorar os atos e a estratégia de defesa do ex-Presidente”. Por meio do celular grampeado, a PF pode ouvir, por exemplo, a conversa do dia 4 de março, quando Lula foi levado a depor, de forma coercitiva, apesar de nunca ter se negado a contribuir com a Justiça.

“Toda a conversa mantida entre advogado e cliente e a estratégia de defesa transmitida naquela oportunidade estava sendo monitorada e acompanhada por Moro e pela Polícia Federal, responsável pela condução do depoimento”. Os advogados destacam, ainda, que o juiz Moro já protagonizou atos de arbitrariedade contra advogados de processos por ele presididos.

“No julgamento do HC 95.518/PR, pelo Supremo Tribunal Federal, há registros de que o juiz Moro monitorou ilegalmente advogados e por isso foi seriamente advertido pelos Ministros daquela Corte em 28.05.2013.”

Em uma petição encaminhada para a OAB de São Paulo e do Rio de Janeiro, os advogados pediram “todas as providências cabíveis em relação a esse grave atentado ao Estado Democrático de Direito”. Também solicitaram que o pedido seja encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça. O processo já foi autuado.

A OAB-RJ se manifestou, apontando que “tal expediente, além de violar frontal e inequivocamente prerrogativa do advogado acerca da inviolabilidade telefônica quando inerente ao exercício da advocacia (artigo 7º, inciso II, da Lei 8.906/94), atenta gravemente contra as bases do Estado Democrático de Direito”.

Risco à democracia

O juiz Sérgio Moro sabe que pode ser alvo de questionamento do CNJ. Trata-se, portanto, de um ataque frontal não apenas contra aqueles que julga ao mesmo tempo em que investiga, mas sobretudo às instituições e leis que garantem a ordem democrática no país.

Promotores de justiça, procuradores da República e procuradores do trabalho, integrantes do MP, de todo o país, levantam-se contra os sistemáticos abusos de poderes e em defesa da ordem jurídica no país. “Operações midiáticas e espetaculares, muitas vezes baseadas no vazamento seletivo de dados sigilosos de investigações em andamento, podem revelar a relação obscura entre autoridades estatais e imprensa”.

E mais: “Neste contexto de risco à democracia, deve-se ser intransigente com a preservação das conquistas alcançadas, a fim de buscarmos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (leia a íntegra do manifesto).

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