Michel Temer discursa em Assunção, na 21ª Cúpula Ibero-Americana, em novembro de 2011. Seis meses depois, Fernando Lugo seria deposto, em processo tão viciado quanto o que hoje, o impeachment
De Outras Palavras, 24 de março, 2016
Por GUILHERME BOULOS
Ao contrário de 1964, não há tanques nas ruas, nem governo lutando por reformas. Os golpes do século 21 são feitos, como em Assunção, de manobras judiciárias, mídia partidarizada e intolerância
A discussão se há ou não um golpe em curso no Brasil deixou de ser uma controvérsia acadêmica. Invadiu ruas e praças. Está nas mesas de botequim.
Muitos fazem analogia com 1964, quando os militares derrubaram o presidente João Goulart e estabeleceram uma ditadura que durou 20 anos. Há paralelos, é verdade: o engajamento de entidades empresariais, a atuação partidária da maioria da imprensa e o uso abusivo do mote da corrupção – empunhado inclusive por corruptos notórios– para insuflar manifestações de rua.
Mas há também muitas diferenças.
Em 1964, o governo de Jango encampou o programa das reformas de base, que incluía os projetos de lei das reformas agrária e urbana, controle da remessa de lucros para o exterior, dentre outras medidas que enfrentavam a elite econômica. Por isso foi derrubado.
A situação com Dilma é outra. É verdade que setores da burguesia e da classe média urbana se incomodam com as políticas sociais dos governos petistas, com a ampliação do crédito popular e o aumento da massa salarial. Mas é igualmente verdade que, no segundo mandato, Dilma tem aplicado a regressão dessas próprias políticas.
A agenda atual do governo nada tem de popular. É a agenda da austeridade, com corte de investimentos sociais. São as reformas da previdência e fiscal, exigidas pela banca. Querem derrubar Dilma não por terem seus projetos contrariados, mas pela avaliação de que seu governo não tem força para levá-los adiante.
Essa é uma importante diferença entre 1964 e 2016. Outra é a participação dos militares. Não há tanques nas ruas e –até onde se sabe– tampouco agitação nas casernas.
Mas, mesmo assim, há golpe. É isso que precisa ser compreendido: o golpismo de ontem não é o mesmo que o de hoje. Os golpes militares clássicos saíram de moda. Não há mais espaço para a marcha do general Olímpio Mourão nem para o bombardeio do Palácio de La Moneda.
Os golpes de hoje são de novo tipo. São “forçagens” na institucionalidade, com respaldo parlamentar e –por vezes– legitimação judicial.
Em Honduras, o presidente Manoel Zelaya foi derrubado em 2009 por um golpe com legitimação da Corte do país. Um avião o exilou na Costa Rica. Determinaram sua prisão por “crime de traição”. Mas o mundo inteiro acusou o golpe. O país foi suspenso pela OEA. Até vozes reacionárias tiveram que se expressar.
No Paraguai, em 2012, o presidente Fernando Lugo foi deposto por um impeachment sem razão jurídica, acusado apenas pelo “fraco desempenho de suas funções”. Golpe cuspido e escarrado, reconhecido internacionalmente como tal. O Paraguai foi suspenso do Mercosul.
Na ocasião, o jurista brasileiro Pedro Serrano disse: “O que houve foi um ‘julgamento’ a jato e de exceção. O prazo de defesa foi exíguo, sem a oferta da devida dilação probatória, as acusações têm caráter preponderantemente ideológico e não de juízo de ilicitude na conduta. A decisão já se encontrava decidida e escrita antes da apresentação da defesa”.
O modelo de golpe orquestrado pela direita brasileira –com amplo apoio no empresariado e na mídia– é o paraguaio. Querem estabelecer para nossa democracia (já limitada) o parâmetro da ainda mais frágil democracia paraguaia.
Junto com o retrocesso institucional vem o clima macarthista de intolerância, o desrespeito a garantias constitucionais e, seguramente, um aprofundamento do ataque aos direitos sociais das maiorias. O Brasil pode demorar décadas para se recuperar deste golpe e cicatrizar as feridas.
Por isso este é um momento de resistência. Não pelas políticas do governo de Dilma, mas apesar delas. Resistência pelas liberdades democráticas, pelo direito de ir às ruas com a cor que quiser para defender o que quiser. Resistência contra uma imprensa partidarizada e um Judiciário seletivo. Resistência por saber o que vem depois.
Nesta quinta-feira (24) haverá mobilizações pelo país em defesa da democracia e de uma saída popular para a crise. Em São Paulo, o largo da Batata estará repleto de povo –de todas as cores e origens– com a coragem dos resistentes. No próximo dia 31 milhares se concentrarão pelas mesmas causas em Brasília.
Resistir é preciso. Ao menos nisso, o Paraguai não será aqui.
Guilherme Boulos
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