Do Le Monde Diplomatique, 10 de Janeiro, 2018
por Raphael Silva Fagundes
O fim do modelo educacional vigente não é algo para um futuro muito distante, ele é possível agora. Poderíamos ter a cura definitiva do câncer, da AIDS ou de diversas outras doenças se não fosse o capitalismo
No Brasil do século XIX predominava um preconceito em relação ao ensino técnico, típico de uma sociedade escravista que menosprezava o trabalho manual. O historiador Francisco Iglésias afirma que “para o brasileiro convencional, informado de valores retóricos, estudo era só o de humanidades ou leis”.[1] Hoje, por outro lado, há um menosprezo pelas humanidades. O maior exemplo disso é a reforma do ensino médio, onde estas tiveram que ceder um espaço maior ao ensino técnico.
Esse espaço começou a se dilatar a partir da Segunda Guerra Mundial quando “as ciências físicas, químicas e biológicas, ao lado da matemática, ganharam um status proeminente e passaram a ser consideradas, então, como a viga mestra do saber escolar por possibilitarem uma formação de cunho tecnológico, necessária à vida empresarial”,[2] explica a professora Circe Bittencourt. O interesse em enriquecer Estados-nação foi substituído pelo interesse em enriquecer as empresas, estas, sim, vistas como as grandes desenvolvedoras da nação.
É aí que mora o problema. Quem disse que deve haver um detrimento das humanidades para que as ciências exatas possam ser valorizadas? O que existe é um “falso dilema ‘humanismo-tecnologia’”, como destaca Paulo Freire. “Numa era cada vez mais tecnológica como a nossa, será menos instrumental uma educação que despreze a preparação técnica do homem, como a que, dominada pela ansiedade de especialização, esqueça-se de sua humanização”.[3]
Mas não há como o capitalismo vigorar sem fazer essa divisão. E por isso, devemos nos perguntar por que é que refletir sobre a situacionalidade do indivíduo no espaço-tempo, ou melhor, por que o compromisso com a realidade, o reconhecimento do ser como sujeito e não como mero espectador, pode ser prejudicial ao capitalismo que prioriza o conhecimento técnico.
Quando um filósofo e um cientista falam a mesma língua
Quem nos responde essa questão é o filósofo István Mészáros: “Vivemos sob condições de uma desumanizante alienação e de uma subversão fetichista do real estado de coisas dentro da consciência (muitas vezes também caracterizada como ‘reificação’) porque o capital não pode exercer suas funções sociais metabólicas de ampla reprodução de nenhum outro modo”.[4]
O capitalismo, que controla os passos da tecnologia, precisa da autoalienação do trabalho, caso contrário, isto é, se vigorasse a autoconsciência, o desenvolvimento tecnológico não estaria mais baseado no lucro, mas na necessidade humana. “A produção é realizada com a finalidade do lucro, não com a do uso”, disse Albert Einstein. “O lucro como motivação, em conjunto com a concorrência entre os capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização do capital, a qual leva a crises cada vez mais graves”.
Em seguida, em seu artigo intitulado “Por que socialismo”, o físico teórico conclui: “Essa deformação dos indivíduos, eu a considero o pior dos males do capitalismo. Nosso sistema educacional inteiro sofre desse mal. Uma atitude competitiva exagerada é inculcada no estudante, que, como preparação para sua futura carreira, é treinado para idolatrar um sucesso aquisitivo”. Se o conhecimento técnico fosse voltado para o desenvolvimento humano e não para o lucro, chegaríamos a níveis tecnológicos inimagináveis. Dessa forma, é mais do que evidente: o capitalismo é um entrave para o desenvolvimento tecnológico e científico da humanidade.
Por isso Einstein é enfático: “Estou convencido de que existe apenas umcaminho para eliminar esses graves males, e esse é o estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional orientado para objetivos sociais”.
É nesse momento que vejo uma relação direta entre Einstein e Mészáros. O primeiro irá dizer: “A anarquia econômica da sociedade capitalista como existe hoje é, na minha opinião, a verdadeira fonte do mal. Vemos diante de nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros se empenham sem cessar em privar uns aos outros dos frutos de seu trabalho coletivo – não por força, mas em inteiro e fiel cumprimento de regras estabelecidas legalmente”. “Isso é assim porque os membros dos corpos legislativos são selecionados por partidos políticos, que são amplamente financiados, ou influenciados de algum outro modo, por capitalistas privados que, para todos os propósitos práticos, separam o eleitorado da legislatura”.[5] Einstein se põe completamente contrário ao modelo democrático capitalista instalado na sociedade ocidental.
Mészáros, por sua vez, afirma que “o papel da educação é de importância vital para romper com a internalização predominante nas escolhas políticas circunscritas à ‘legitimação constitucional democrática’ do Estado capitalista que defende seus próprios interesses”.[6] Portanto, a mudança deve ser estrutural e ela tem a educação como o seu centro gravitacional.
Desse modo, a mudança de consciência só seria possível através de uma universalização da educação e do trabalho. Educar e trabalhar com objetivos sociais. Essa conscientização, tanto da educação quanto do trabalho, terá como fim apenas o desenvolvimento humano, o qual a ciência e a tecnologia fazem parte. Isso é o socialismo na prática.
Um exemplo disso foi o reconhecimento do modelo científico capenga norte-americano que forçou o governo dos Estados Unidos a conceder a uma empresa farmacêutica da Califórnia o direito de concluir um acordo comercial multimilionário com Cuba, em julho de 2004, para a distribuição de uma droga anticancerígena capaz de salvar vidas, suspendendo assim, por causa disso, uma das regras de seu selvagem bloqueio.[7]
Outro exemplo foi o fato da URSS ter avançado de uma tecnologia praticamente feudal para uma tecnologia espacial em quarenta anos. Tudo isso passando por diversas tentativas de invasão pelas potências capitalistas, sabotagens e uma Guerra Mundial na qual o exército que teve mais perda foi o soviético!
O fim do modelo educacional vigente não é algo para um futuro muito distante, ele é possível agora. Poderíamos ter a cura definitiva do câncer, da AIDS ou de diversas outras doenças se não fosse o capitalismo. Poderíamos ter habitado outros planetas, descoberto riquezas incalculáveis no fundo do mar se o conhecimento não dependesse da ganância do lucro. “Um avanço pelas sendas de uma abordagem à educação e à aprendizagem qualitativamente diferente pode e deve começar ‘aqui e agora’”.[8]
*Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
[1] IGLÉSIAS, Francisco. Vida política (1848-1868). HOLANDA, Sérgio Buarque de. (dir.). O Brasil Monárquico: reações e transações. V. 3, t. 2. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 78.
[2] BITTENCOURT, Circe. Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de História. ___________ (org). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2006. P. 18.
[3] FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 62
[4]MÉSZÁROS, István (org.). A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 59.
[5] EINSTEIN, Albert. Por que socialismo? https://www.marxists.org/portugues/einstein/1949/05/socialismo.htm
[6]MÉSZÁROS, István (org.). A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 61.
[7] Id. p. 66.
[8] Id. p. 67.
Grupo de Pesquisa Sul-Sur
Este grupo se insere numa das linhas de pesquisa do LABMUNDO-BA/NPGA/EA/UFBA, Laboratório de Análise Política Mundial, Bahia, do Núcleo de Pós-graduação da Escola de Administração da UFBA. O grupo é formado por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e de diferentes instituições públicas de ensino e pesquisa.
Buscamos nos apropriar do conhecimento das inter-relações das dinâmicas socioespaciais (políticas, econômicas, culturais) dos países da América do Sul, especialmente do Brasil, da Bolívia, da Argentina e do Chile, privilegiando a análise histórica, que nos permite captar as especificidades do chamado “subdesenvolvimento”, expressas, claramente, na organização das economias dos diversos povos, nos grupos sociais, no espaço.
Nosso campo de investigação dialoga com os campos da Geopolítica, Geografia Crítica, da Economia Política e da Ecologia Política. Pretendemos compreender as novas cartografias que vêm se desenhando na América do Sul nos dois circuitos da economia postulados por Milton Santos, o circuito inferior e o circuito superior. Construiremos, desse modo, algumas cartografias de ação, inspirados na proposta da socióloga Ana Clara Torres Ribeiro, especialmente dos diversos movimentos sociopolíticos dessa região, das últimas décadas do século XX à contemporaneidade.
Interessa-nos, sobretudo, a compreensão e a visibilidade das diferentes reações e movimentos dos países do Sul à dinâmica hegemônica global, os espaços de cooperação e integração criados, as potencialidades de criação de novos espaços e os seus significados para o fortalecimento da integração e da cooperação entre os países do Sul, do ponto de vista de outros paradigmas de civilização, a partir de uma epistemologia do sul. Através das cartografias de ação, buscamos perceber as antigas e novas formas de organização social e política, bem como os espaços de cooperação SUL-SUL aí gestados. Consideramos a integração e a cooperação Sul-Sul como espaços potenciais da construção de novos caminhos de civilização que superem a violência do desenvolvimento da forma em que ele é postulado e praticado.

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